Sobre Phobos e Deimos

Quinta, 27 de outubro de 2011

(republicação do post de 13 de julho de 2011)

O deus grego da guerra, Ares (Marte, para os Romanos), tinha dois filhos, Phobos (medo) e Deimos (pavor), que precediam o pai antes das batalhas para desestabilizar os guerreiros inimigos.

A mitologia criada pelos gregos, imortal por sinal, apenas buscava uma explicação de ordem metafísica para fenômenos que não podiam, na época, serem explicados corretamente pela razão. E o talento dos gregos em revelar a alma humana foi tão grande que até hoje seus pensamentos encontram-se inseridos no nosso imaginário e na nossa linguagem (nas línguas ocidentais de um modo geral).

Phobos e Deimos desempenham seu desiderato até hoje devastando o emocional dos soldados e de quem mais for se submeter a uma provação difícil, incluindo aí o examinandos da OAB.

A maioria dos candidatos sofre de algum grau de de estresse antes da prova, e isso inclusive já foi constatado cientificamente.

Aí vem o questionamento: como enfrentar esse momento em que Phobos e Deimos grassam o emocional dos candidatos?

Auto-ajuda? Motivação? Energias positivas?

Sempre fui contrário a esse tipo de expediente, por achá-los extremamente limitados. E é por isso que escrevo o que escrevo, ainda mais nessa hora: o candidato TEM de saber o que está acontecendo!

Para quem é segredo que o Exame tem reprovado 9 entre 10 candidatos? Isso é um fato!

Para quem é segredo que quanto mais candidatos se inscrevem mais a OAB reprova? Fato estatisticamente comprovado!

O que vocês querem? Esconderem-se por detrás de palavras de alento, do famoso "você pode", para alimentar um estado de espírito um pouco mais ameno, e que ao fim, na hora da prova, será completamente abandonado?

Estabilidade emocional e tranquilidade vêm, em grande parte, da razão e da experiência, do treino e do preparo para o desafio. Enfrentar as dificuldades de frente, sabendo o que se espera, e daí combater Phobos e Deimos é preferível ao invés de se enganar com placebos emocionais, com bravatas e com um suposto espírito guerreiro.

Muita gente usa de analogias impróprias para motivar os candidatos, fugindo completamente das razões e causas do medo, ansiedade e do pavor, e levando a uma falsa percepção de segurança. Claro, o fazem querendo evidentemente ajudar, mas o caminho não é esse.

Vocês não são guerreiros, não são soldados, não fazem parte de tropas de elite e não estão indo para nenhuma guerra ou batalha.

É só uma prova.

Caneta e papel, nada além disso. Pode ser difícil, pode assustar, suas consequências, projetadas emocionalmente, podem apavorar, mas ainda assim, independente de quaisquer construções, é só uma prova.

Apesar disso, podemos tirar algumas lições de quem efetivamente iria enfrentar o combate, arriscando a própria vida, e se confrontava com o medo natural da morte, e, ainda assim, fazia o lugar comum em situações muito incomuns.

Há uma passagem no livro de Tucídides, a "História da Guerra do Peloponeso" em que o comandante espartano Brasidas (curiosamente Tucídides combateu Brasidas na batalha do porto de Eion), ao se dirigir aos seus soldados antes de uma batalha contra guerreiros macedônicos, fez uma interessante comparação entre o comportamento das tropas espartanas (peloponésios), traídos, abandonados pelos seus aliados e em menor número, e seus oponentes, aqui parcialmente reproduzido:

"Se eu não suspeitasse, peloponésios, de que estais em uma situação de pânico porque fostes deixados sós e porque vossos adversários são numerosos e bárbaros, não vos daria instruções na hora de encorajar-vos. Mas nas circunstâncias presentes, quando nos vemos abandonados pelos aliados diante da multidão de inimigos, tentarei com um breve lembrete e conselhos transmitir-vos as considerações mais importantes.

Cumpre-vos ser bravos na guerra não pela presença de aliados em cada combate, mas por vosso próprio valor; nem deveis recear o número dos adversários, vós que não viestes de países como os deles, nem de uma terra em que muitos dominam poucos, e sim de uma terra onde, ao contrário, a minoria domina a maioria, com força adquirida não por um meio qualquer, mas pela superioridade no combate.

Em relação aos bárbaros, que por inexperiência agora temeis, ficai sabendo, tanto pelos confrontos que já tivestes com os macedônios em sua terra, quanto pelo conhecimento que tenho por inferência e pelos relatos de terceiros, que não se trata de homens tão terríveis quanto parecem. Com efeito, com relação a tudo que no inimigo é na realidade uma fraqueza mas pode dar a impressão de força, uma informação exata transmite maior confiança para resistir; contrariamente, quando o inimigo possui alguma sólida vantagem, se não a conhecermos previamente será pura temeridade atacá-lo. Esses ilírios, para aqueles que não tiveram experiência deles a ameaça de seu ataque assusta, pois seu número é realmente aterrador à primeira vista, a altura de seu grito de guerra é difícil de suportar e a maneira de agitar as suas armas a esmo tem um efeito alarmante. No combate corpo a corpo, todavia, se seu opositor suporta aquele estardalhaço aparatoso, eles não são os homens que aparentam ser; não tendo uma ordem regular de formação eles não se envergonham de abandonar qualquer posição quando pressionados, e como a fuga e o ataque são considerados igualmente meritórios entre eles, não têm um critério para provar a sua coragem. Além do mais, um modo de lutar em que cada um é seu próprio comandante oferece-lhes o melhor pretexto para se salvarem comodamente.

Enfim, eles pensam que é menos arriscado atemorizar-vos a uma distância segura do que vos enfrentar corpo a corpo; se assim não fosse, eles não seguiriam a primeira alternativa e sim a segunda. Podeis portanto ver claramente que a impressão terrificante que eles dão significa muito pouco na realidade, afetando somente a vista e os ouvidos. (...)

Brasidas teve a sensibilidade de perceber a distinção nítida entre o resultado do treinamento dos soldados espartanos e o natural comportamento dos "bárbaros".

Os gritos, as bravatas, a fúria e o medo dos macedônicos nada mais eram do que o resultado óbvio do comportamento humano diante de uma ameaça real e da perspectiva da morte frente ao combate.

O medo dessa perspectiva é universal, e como tal, absolutamente normal e compreensível.

O apavorante era a frieza, o silêncio e a disciplina dos espartanos.

O apavorante era ver homens soterrarem seus instintos e naturais pavores sob o manto da ordem, ignorando qualquer possibilidade de morte e fazendo o trabalho sujo independente das circunstâncias.

Atenas legou ao mundo a democracia, a política, o teatro, a filosofia, uma arquitetura maravilhosa e a visão crítica do mundo. Os espartanos legaram a hoje chamada disciplina militar ocidental.

Tal disciplina fez com que Alexandre conquistasse o mundo conhecido da época; fez de Roma um império de 700 anos de duração; segurou os muçulmanos em Poitiers; fez com que a República Veneziana e a Espanha imperial barrassem o imenso império Otomano em Lepanto; fez a Europa colonizar a África, Américas, Ásia e Oceania; fez das duas grandes guerras mundias mostruosos derramentos de sangue e definiu integralmente o mapa do mundo hoje.

Flávio Josefo, historiador judeu romanizado, assim definiu a atuação das legiões romanas: "Seus treinamentos eram batalhas sem derramamento de sangue e suas batalhas eram treinamentos com derramamento de sangue."

E o que há por detrás dessa frieza toda? Desse controle emocional poderoso que impede um homem de sucumbir diante de Phobos e Deimos?

Os espartanos tinham um termo para um estado metal que deveria ser evitado a qualquer custo: Katalepsis (possessão).

A possessão deveria ser evitada quando a bravura esmorecia ou quando a fúria ameaçava tomar conta dos ?????????? (espartanos), e os oficiais eram encarregados de manter a tropa de posse da RAZÃO, da consciência dos fatos e com a devida lucidez.

Eis o ponto: todo o treinamento tem por meta, também, de manter a razão de quem treina, a posse das faculdades mentais, a consciência diante dos fatos, e agir em conformidade, evitando assim incorrer em falhas na execução das tarefas advindas da confusão, falsa percepção da realidade, da fadiga, do pânico e do medo.

Vocês não são e não precisam ser soldados.

O Exame de Ordem não é uma guerra.

Não há inimigos.

Mas mesmo assim, o medo e o pavor assediam os candidatos.

Não se trata, como aduzi de bater no peito e "enfrentar" a prova e seus próprios receios e limitações. O candidato, qualquer candidato, tem de enxergar as cosias como elas são, sem mistificações, e aceitar previamente o resultado, seja ele bom ou ruim.

No domingo NINGUÉM vai morrer, e qualquer prejuízo poderá ser reparado e a vida seguirá adiante.

Vocês pretendem ser advogados e o Exame de Ordem, diante de TODA a carreira, é o desafio mais fácil, pois o único adversário é a prova. Após a OAB vocês enfrentarão o mercado, e tudo o que ele contém e representa, e garanto que é muito, mas muito mais difícil que o Exame.

Vocês, sem exceção, são adultos, e não podem se iludir com placebos emocionais, muito menos apavorarem-se com a realidade que inexoravelmente baterá em suas portas no próximo domingo: bem-vindos à vida adulta!

Se não se deram conta disso antes, deem agora.

Sejam então, como os gregos denominavam, um Strategos Autokrator, o general auto-governante, termo usado pelos helênicos para designar o comandante absoluto em tempos de guerra.

Governem a si mesmos, contenham seus temores e seus medos, mantenham a mente límpida, clara, focada, sem se esconder em ilusões e sem ignorar o que vem pela frente.

Não existe mágica e nem processos milagrosos para salvar ninguém na hora da prova. Cada um estará sozinho, completamente sozinho, e se não se controlar, vai sucumbir diante, nada mais, nada menos, de si mesmo.

Para os espartanos, treinados a vida inteira na guerra, o combate nada mais era do que o trabalho.

No domingo, fazer a prova será o trabalho de vocês.

Só isso, um trabalho. E treinamento para isso vocês tiveram.

Vocês vão terminar a prova, vão para casa e a vida vai continuar, e novos dias surgirão no caminho de vocês, cada um com seu próprio desafio, e o Exame sequer é o primeiro deles, e nem será o último. Não o transformem no que ele não é.

Phobos e Deimos são para a guerra, e não para uma prova.

Como bem explanou Brasidas, não é preciso gritar e bater no peito para enfrentar o desafio. Isso só serve para purgar, e mal, o Tromos (terror).

Até o domingo.