Segunda, 22 de outubro de 2012
O professor Geovane Moraes teceu algumas considerações sobre a prova de Direito Penal e alguns questionamentos que estão sendo feitos.
Gabarito extraoficial escrito da prova de Direito Penal
Fala galera.
Passada a agonia inicial e a afobação natural que se segue ao termino da prova, vou fazer algumas considerações sobre as principais dúvidas e questionamento que recebemos sobre a segunda fase de direito penal.
Inicialmente, preciso destacar que são considerações pessoais. Não sei e não tenho como saber o que será apresentado pelo espelho oficial de correção. Este só será divulgado pela FGV no dia 05 de novembro. Até lá, tudo que posso fazer é externar minha opinião sobre a prova.
Destaco também que minha intenção não é prejudicar ou entrar em conflito de ideias com ninguém. Quando elaboramos um espelho extraoficial e preliminar, nosso objetivo é dar uma luz sobre a prova. Algumas pessoas que respondem de forma diversa do que colocamos devem pensar que estamos querendo a sua reprovação. Pelo contrário. Queremos a aprovação de todos. Não sou senhor da verdade. Apenas digo o que entendo sobre os temas abordados. Se este será ou não o posicionamento da banca, não tenho como saber.
Alguns me cobravam hoje o modelo de recurso, pois achavam que tinham errado esta ou aquela questão. O espelho oficial nem saiu ainda, como é que alguém já podem querer falar em recurso.
Tudo ao seu tempo.
Então vamos lá, pela ordem de incidência das perguntas:
1 ? Em relação à peça, o crime que ocorreu foi exercício arbitrário das próprias razões, nos termos do art. 345 do CP. Muitos me perguntaram por que este crime e não o de ameaça, tipificado nos termos do art. 147 do CP. A resposta é: princípio da especialidade.
Aplica-se regra específica em detrimento de genérica, inclusive para fins de tipificação de crimes. No caso, temos um notório conflito aparente de normas penais. A tipificação de ameaça, em relação ao caso concreto é genérica, ao passo que a tipificação de exercício arbitrário é específica. Logo, a solução deste conflito será a favor do art. 345.
O crime é de Ação Penal Privada. O texto normativo é taxativo ao afirmar isso. O crime só seria procedido mediante Ação Pública, caso houvesse emprego de violência. O enunciado deixa claro que só tivemos emprego de grave ameaça.
O bem jurídico protegido é a administração da justiça na acepção de solucionar os conflitos sociais tutelados pelo direito. Para que o crime esteja caracterizado, não é necessário nenhum resultado naturalístico. Basta que a conduta do agente tenha a tendência, o ânimus, a intenção de satisfazer pretensão legítima ou não, passível de apreciação pelo poder judiciário, sendo irrelevante a natureza desta pretensão.
O crime só pode ser praticado dolosamente. Entendo que a consumação estará caracterizada com a prática de atos executórios objetivando a satisfação da pretensão, ainda que o agente delituoso não consiga atingir o resultado pretendido.
2 ? Possibilidade de alegação de emendatio libelli em sede de Resposta Acusação.
Reconheço que este tema é controvertido na doutrina. Normativamente, não existe vedação a tal aplicação.
Art. 383 do CPP - O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave.
§ 1o Se, em consequência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei.
§ 2o Tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos.
Caso a questão fosse de mutatio libelli, aí sim seria inequívoco o cabimento de tal instituto apenas após o termino da instrução probatória, pois o art. 384 do CPP traz a expressão ?encerrada a instrução probatória?.
Um dos pontos que elenco para reconhecer a possibilidade de aplicação de tal instituto em sede de RA é o fato que o acusado não se defende da tipificação feita, mas sim dos fatos narrados na peça acusatória. Pouca importa a tipificação, o que interessa são os fatos. O próprio magistrado norteia-se pelo princípio da livre dicção do direito, baseado na premissa ?dai-me os fatos e eu te darei o direito?.
Além disso, a lei prevê a possibilidade de suspensão condicional do processo em caso de emendatio libelli. Aqui, aplico um raciocínio cartesiano. O momento ideal para a propositura da suspensão do processo é no início da instrução probatória. A regra da emendatio determina que caso cabível, o juiz deve seguir os ditames da suspensão condicional. Logo, a emendatio é possível no início do processo, não existindo impedimento algum a sua arguição em sede de Resposta a Acusação.
E por que seguir esta tese e já começar falando dá emendatio libelli?
Existindo a alteração da definição jurídica para exercício arbitrário, abre-se uma frente para a arguição de pelo menos cinco preliminares muito fortes.
I ? Decadência ao direito de queixa, o que extingue a punibilidade do agente;
II- Incompetência do juízo;
III ? Ilegitimidade da parte;
IV- Falta de pressupostos ou condições para o exercício da ação penal;
V- Arguição de ausência de justa causa para a existência da ação penal.
Pensando em termos de prova de segunda fase, temos algumas das preliminares clássicas do exame de ordem: art 107 do CP, art. 564 do CPP e art. 395 do CPP.
Pensando além da prova, teríamos diversas frentes de pleitos ao final da peça.
Observando o art. 396-A, um dos fundamentos normativos da Resposta a Acusação observamos:
Art. 396-A. Na resposta, o acusado poderá argüir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário
Assim sendo, a alteração da tipificação do crime, permitiria a defesa arguir um número muito maior de preliminares e de pedidos subsidiários, além do pedido principal de absolvição sumária, como o reconhecimento da extinção de punibilidade por decadência, anulação do recebimento da peça acusatória e remessa dos autos ao JECRIM. É a lógica do ?não entendendo vossa excelência por...?. Ou seja: se é para pedir, vamos pedir o máximo possível para ver o que conseguimos para o nosso cliente.
Destaque-se também que algumas pessoas estavam perguntando por que afirmo que houve decadência ao direito de queixa, visto que a questão não indica o dia do recebimento da peça acusatória?
Por um motivo elementar: o prazo decadencial do direito de queixa é de seis meses a contar do momento que a vítima tomou ciência da autoria do delito. Esse prazo, como sempre repete a minha amiga professora Ana Cristina, não sofre interrupção ou suspensão. A data do recebimento da denuncia, seria irrelevante. No momento em que o réu foi citado para apresentar RA, já era manifesta a decadência, visto terem sido transcorridos mais de sete meses da data do delito e a vítima ter, desde o primeiro momento, ciência da autoria.
Mas como disse no começo, é isso o que eu entendo. Não quer dizer que seja isso que vai ser indicado no espelho de correção. Se você perguntar em qualquer lugar do mundo, qual a Formula de Bhaskara, a resposta sempre será , embora a maioria das pessoas não tenha a menor ideia do que isso quer dizer, inclusive eu.
Já Direito Penal, é uma ciência humana, logo passível de diversas interpretações e vertentes doutrinárias.
3 ? Tipificação das condutas de Abel e Felipe, na segunda questão.
Entendo que Abel praticou furto qualificado pelo emprego de fraude.
Inicialmente vou tomar a liberdade de citar dois doutrinadores, referência, dentre outros, na formação jurídica nacional:
Guilherme de Souza Nucci ? Código Penal Comentado, 11 Ed., pag. 748.
?Fraude é manobra enganosa, destinada a iludir alguém, configurando, também uma forma de ludibriar a confiança que se estabelece naturalmente nas relações humanas. Assim, o agente que criar uma situação especial, voltada a gerar na vítima um engano, tendo por objetivo praticar uma subtração de coisa alheia móvel, incide da figura qualificada... Fraude implica em um modo particularizado de abuso de confiança. Este, por si só, exige uma relação específica de segurança concretizada entre o autor e vítima, enquanto a fraude requer apenas um plano ardiloso que supere a vigilância da vítima, fazendo com que deixe seus bens desprotegidos, facilitando a ação criminosa.?
O exemplo dado pelo eminente jurista, inclusive, em muito se assemelha ao caso indicado na prova. Ele relata o caso de um funcionário de companhia aérea, que a pretexto de tomar conta das bagagens de um turista, recebe estas enquanto a vítima vai até um balcão de informações, aproveitando-se para subtrair bens. Segundo Nucci, a fraude está caracterizada pelo desapego que o proprietário teve em relação aos seus bens, uma vez que acreditou que seus pertences seriam protegidos pelo agente delituoso.
Cezar Roberto Bitencourt ? Código Penal Comentado, 5ª. Ed., pag. 544.
?Embora a fraude seja inerente ao crime de estelionato, aquela que qualifica o furto, não se confunde com a desta. No furto, a fraude burla a vigilância da vítima, que, assim não percebe que a res lhe está sendo subtraída; no estelionato, ao contrário, a fraude induz a vítima a erro... No furto, a fraude visa desviar a posição atenta do dono da coisa... O dissenso da vítima, no crime de furto, mesmo fraudulento, e sua aquiescência, embora viciada, no estelionato são aspectos que os tornam inconfundíveis.?
No caso analisado, o sujeito passivo teve o seu bem subtraído. Subtrair é verbo nuclear do tipo penal de furto. Como meio de facilitação da subtração, Abel se faz passar por manobrista, caracterizando a fraude. Logo, furto qualificado pelo emprego de fraude.
No caso de estelionato, o verbo nuclear do tipo é obter.
Art. 171 do CP - Estelionato - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.
Entendo que o agente delituoso que adentra veículo e evade-se, em ato contínuo, está subtraindo coisa móvel alheia e não obtendo vantagem ilícita. Mais uma vez manifesta-se o princípio da especialidade para a solução de conflitos aparentes de normas penais.
Em relação à conduta de Felipe, a questão não fornece elementos para que a subtração das chaves possa caracterizar a qualificadora destreza, como muitos estão questionando.
Entendo por destreza, uma habilidade especial que possui o meliante para subtrair a res furtiva na presença da vítima, sem que esta perceba a referida subtração. No caso não existe informações se a subtração da chave ocorreu na presença ou não da vítima, apenas indicação que a vítima não percebeu esta subtração.
Ainda é válido destacar, que o objetivo do meliante não era subtrair a chave, mas sim o veículo. A subtração da chave representa meio de execução da conduta principal. Em relação a esta conduta, a subtração do carro, não temos nenhuma informação que nos permita tê-la por qualificada. Logo, a única tipificação possível é de furto simples.
Agora, o mais importante de tudo: calma, calma, não criemos pânico, como diria Chapolim Colorado. Vamos aguardar o espelho de correção da FGV.
Juntos e misturados, sempre.
Um cheiro para quem for de cheiro e um abraço para quem for de abraço.