Presidente da OAB/RJ critica fortemente deputado contrário ao Exame de Ordem

Terça, 16 de setembro de 2014

No último final de semana foi publicada em um jornal do Rio de Janeiro (ignoro qual) uma propaganda eleitoral do deputado Eduardo Cunha, notório inimigo do Exame de Ordem e, por que não, da OAB também.

Para quem não sabe, Eduardo cunha tem se esmerado nas tentativas de acabar com a prova da OAB, tendo inclusive levado sua luta para o plenário da Câmara dos Deputados. Até agora, entretanto, o deputado já colheu 3 derrotas, seja do fim do Exame ou mesmo de uma tentativa paralela de acabar coma  taxa de inscrição da prova.

Na propaganda publicada neste final de semana, o deputado divulgou em letras garrafais a sua plataforma contra o Exame, ou seja, simplesmente acabar com ele.

Confiram:

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Isso gerou a indignação do atual presidente da OAB/RJ, Dr. Felipe Santa Cruz, que usou seu perfil no facebook para criticar o deputado, que se encontra na luta por mais um mandato.

O presidente não poupou palavras para criticar Eduardo Cunha e suas tentativas de acabar com a prova:

8 Fonte: Facebook Eduardo Cunha talvez não saiba (ou sabe e não se importa) que o fim do Exame iria praticamente destruir o Poder Judiciário no Brasil. Não seria só um ataque à advocacia, mas sim a toda a estrutura de um poder.

O que aconteceria se o Exame de Ordem acabasse? 

O Exame de Ordem, tal como o conhecemos hoje, foi resultado da antevisão do Conselho Federal da OAB e do parlamento brasileiro diante da inevitabilidade dos fatos: a expansão do ensino superior brasileiro. A partir do um modelo público de ensino, o Governo Federal decidiu mudar a matriz educacional, transferindo para a iniciativa privada as rédeas do ensino superior. A subsequente expansão desenfreada do número de faculdades de Direito mostrou que a OAB vislumbrou bem o futuro.

Em 1991 existiam no Brasil 165 faculdades de Direito; hoje, são 1240. Existem mais faculdades de Direito no nosso país do que a soma do resto de todos os demais países do mundo, incluindo nesse rol China, Índia e Estados Unidos, nações com grandes populações. Não há notícia, em parte alguma do planeta, de tamanha expansão no número de faculdades, seja de Direito ou de qualquer outra área do conhecimento. É um evento singular.

Tal expansão do número de faculdades de Direito impactou diretamente no mercado educacional. O Ministério da Educação, valendo-se de critérios próprios, ao autorizar o funcionamento indiscriminado de faculdades gerou uma imensa disputa das faculdades privadas por novos alunos. Tal disputa, por força de ações de mercado, obrigou a esmagadora maioria das instituições de Direito a simplificar ao extremo seus processos de seleção (vestibulares) franqueando o acesso à Ciência do Direito de forma praticamente sem critérios, aceitando novos universitário desprovidos de uma base educacional adequada, em especial em um ramo do conhecimento repleto de complexidades como o Direito.

Existem fundamentos para essa assertiva. em 2012 foi divulgado Instituto Paulo Montenegro (IPM) e pela ONG Ação Educativa o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf). Segundo o Indicador, entre os estudantes do ensino superior, 38% não dominam habilidades básicas de leitura e escrita. O indicador classifica os avaliados em quatro diferentes níveis de alfabetização: plena, básica, rudimentar e analfabetismo. Os estudantes não enquadrados no nível pleno são considerados analfabetos funcionais, ou seja, aptos ao exercício da leitura e escrita, mas incapazes de interpretar e associar informações.

Dados do Censo da Educação Superior de 2013, publicado semana passada, mostrou que na última década mais do que dobrou o número de brasileiros que frequentam cursos superiores.  O total de alunos na educação superior chega a casa de 7,3 milhões de estudantes em 2013, quase 300 mil matrículas acima do registrado em 2012. Neste período as matrículas cresceram 3,8%, sendo 1,9% na rede pública e 4,5% na rede privada.

São 32 mil cursos de graduação oferecidos por 2,4 mil instituições de ensino superior, sendo que 301 são públicas e 2 mil são particulares. As universidades são responsáveis por 53,4% das matrículas, enquanto as faculdades concentram 29,2%. Em 2013, 2,7 milhões de pessoas ingressaram no ensino superior.

A meta do governo é chegar a 2020 com 10 milhões de matrículas no ensino superior. Diante deste quadro é possível encontrar uma justificativa para o ingresso de tantos novos universitários na educação superior: a demanda por lucros das Instituições de Ensino.

A oferta de serviços educacionais é um negócio e sua justificativa, naturalmente, é o lucro. Hoje o vestibular para ingresso em faculdades de Direito é mero instrumento formal, sem impor maiores obstáculos aos vestibulandos. E o FIES assegura a viabilidade financeira dos estudos desde o ingresso até conclusão no curso. A figura da reprovação e jubilosamente não existem, desde que o candidato mantenha em dia os pagamentos.

Apesar das diretrizes curriculares do  Conselho Federal de Educação e de suas constantes reavaliações, a fiscalização do MEC revela-se absolutamente insuficiente para controlar a qualidade do ensino ofertado pelas Instituições de Ensino Superior em que pese a imoderada concessão de autorizações de funcionamento de mais e mais faculdades em Direito, no particular, como também em outras áreas de conhecimento.

Não raro a Ordem dos Advogados do Brasil questionou a ausência do cumprimento das exigências básicas relativas às condições materiais para a oferta do ensino jurídico, como a falta de bibliotecas, de qualificação do corpo docente, de infraestrutura, entre outros fatores. Infelizmente constata-se que se a meta é o lucro, o importante é assegurar a implementação de um mínimo de infraestrutura para este lucro ser viabilizado. Afinal, a fiscalização é precária.

O contexto atual produz, sem sombra de dúvida, uma verdadeira multidão de bacharéis em Direito desguarnecidos das mínimas condições para o exercício da profissão, vítimas, certamente, de um ensino deficitário e da inação dos órgãos de fiscalização.

A precarização do ensino, somado à ausência de processos de seleção (vestibulares) e o vilipêndio do papel das faculdades privadas, que de instrumento para a difusão do conhecimento e preparo para a vida profissional se transformaram em meros instrumentos para a viabilização do lucro, mercantilizando o ensino, gerou um número significativo de estudantes e bacharéis incapazes de articular no papel ideias com começo, meio e fim, afora serem incapazes de compreenderem integralmente a problemática apresentada pelos rigores do Exame de Ordem, gerando uma manifesta inabilidade em criar uma linha de raciocínio lógico, apto a convencer eventual magistrado, no caso, a banca corretora, dos direitos de seu hipotético cliente.

O papel do Exame da OAB é o de filtrar candidatos com deficiências de formação. O Exame, é bem verdade, apresenta suas deficiências e comete injustiças, mas analisado dentro de um contexto mais abrangente, revela-se um instrumento relativamente adequado a cumprir com o papel de se permitir a seleção dos futuros advogados assegurando destes um mínimo de conhecimentos.

Não se deve confundir a diplomação em um curso superior jurídico, ato este estritamente formal, com o real domínio dos rudimentos do Direito. Este domínio, exigido em grau mínimo pelo OAB, é o que realmente o Exame de Ordem revela.

Poderíamos fazer uma pergunta interessante: os percentuais de reprovação decorrem de uma prova difícil ou a prova é difícil porque a formação dos candidatos, em sua maioria oriundos de instituições de ensino mercantilistas, é insatisfatório? Sob um ponto de vista teórico, poder-se-ia afirmar que o Exame de Ordem reprova preponderantemente porque os candidatos possuem deficiências de aprendizagem.

Naturalmente que devemos descartar as generalizações. Injustiças cometidas edição após edição do Exame prejudicam milhares de candidatos, além de que outros aspectos pontuais podem influir no resultado, tal como o nervosismo, por exemplo. Em que pese essas circunstâncias, o Exame de Ordem cumpre satisfatoriamente o seu papel se visto como uma prova de massa aplicada três vezes ao ano.

Apesar da existência do Exame de Ordem, hoje o Brasil possui 800 mil advogados e um número próximo aos 2 milhões de bacharéis em Direito já reprovados na seleção da OAB, sendo que a maioria reprovou ao menos uma vez. É o reflexo da hipertrofia do sistema educacional e da expansão irresponsável do número de faculdades de Direito.

O imenso número de advogados, por si só, produz distorções inacreditáveis no mercado profissional. Hoje o salário-base de um jovem advogado oscila entre R$ 900,00 até R$ 1.300,00. Curiosamente, o salário de um auxiliar de pedreiro, o iniciante da profissão, é de R$ 1.100,00. Inclusive existe um Projeto de Lei (PL 2774/11), do deputado Andre Moura (PSC-SE), que regulamenta a profissão de pedreiro e fixa o piso salarial de R$ 1,5 mil por mês ou R$ 8,52 por hora. O valor, segundo a proposta, deverá ser revisto anualmente de acordo com a variação do Índice Nacional dos Preços ao Consumidor (INPC).

Considerando o abismo existente na formação entre um e de outro profissional, constata-se a saturação no número de advogados hoje existentes. Com o fim do Exame de Ordem, o salário-base seria, logicamente, o mínimo.

Aliás, a título meramente ilustrativo, poderíamos olhar o piso salarial de outros profissional com nível de formação superior:

Médico:

Engenheiro: R$ 3.732,00

Veterinário: R$ 3,732,00

A distorção decorre da saturação do mercado. Apesar da existência do Exame de Ordem, o mercado da advocacia já ultrapassou o ponto de saturação. No começo de 2010 publiquei uma postagem sobre um anúncio nos classificados online do Correio Braziliense, com um conteúdo chocante:

"Oferta de emprego Oferta publicada em 12/07

Nível Superior

Produto/Serviço: MOTOBOY COM OAB Preço:

ESCRITÓRIO ADVOCACIA MOTOBOY COM OAB contratamos. Interessados enviar curriculo para XXXXX@gmail.com"

Essa postagem inclusive foi usada por outras mídias, porquanto ela, por si só, causava um impacto de estranhamento nas pessoas: ""Motoboy com OAB".

Mas essa abordagem, por mais chocante que seja, tem um fundamento no próprio mercado. Trata-se da lex mercatoria. O sistema remuneratório da iniciativa privada segue um princípio básico do capitalismo: o valor está na raridade. A regra é simples até: muitos advogados no mercado representam uma remuneração mais baixa. O advogado virou uma commodity!

Remuneração baixa é a regra em um mercado saturado e verdadeiro indicativo da saturação. É no preço que se verifica as condições do sistema.

Além disso, como profissionais liberais, os advogados competem entre si pelo jurisdicionado, acarretando nas implicações naturais de qualquer competição: concentração e exclusão de mercado.

O fim do Exame de Ordem, dentro do contexto acima declinado, impactaria da seguinte forma no sistema judiciário:

A) Paralisação imediata da 1ª instância das Justiças em todo o país, com a super-ofertação de lides de forma indiscriminada por profissionais ávidos por sobreviver em uma ambiente extremamente saturado.

Considerando verdadeiros os dados da existência de três a quatro milhões de bacharéis em Direito sem carteira, o número de advogados no Brasil, em tese, quadruplicaria da noite para o dia. Provavelmente nem todos os bacharéis iram requerer a inscrição na OAB, mas certamente mais de um milhão destes iriam desejar adentrar na advocacia, e isso em uma estimativa extremamente conservadora.

A saturação do mercado derrubaria drasticamente os valores dos honorários e dos salários pagos aos advogados em toda a cadeira profissional. Teríamos a precarização absoluta do exercício da profissão.

B) Destruição sistemática os direitos subjetivos de milhões de pessoas, mal-atendidas por profissionais que sequer dominam os rudimentos da língua pátria, afora a precariedade do domínio dos instrumentos técnicos-legais

Muitos dizem, e o dizem por absoluto desconhecimento da realidade, que o mercado selecionaria os melhores. O problema reside no lapso de tempo para a implementação de tal seleção. E este é o aspecto menos preocupante da questão.

A seleção pelo mercado implicaria na pulverização dos direitos subjetivos do jurisdicionado. Ser escolhido ou não pelo mercado implica necessariamente em expor as pessoas aos serviços de profissionais tecnicamente inábeis.

Esse seria o preço da liberalização. Não é resultado do acaso, ou mero capricho corporativo a elevada regulamentação para a prática da advocacia. Sem o advogado o Poder Judiciário não funciona, não há prestação jurisdicional e não há Justiça. Assegurar a averiguação de um mínimo de conhecimentos é um papel fundamental para a OAB em nome da regularidade e funcionamento de todo o Poder Judiciário.

C) Descrédito da profissão de advogado e da capacidade da Justiça em dar a prestação jurisdicional. Risco sistêmico de explosão da autotutela (justiça com as próprias mãos).

Com a quebra da confiança na figura do advogado e a explosão do número de demandas, decorrentes da saturação do sistema como também da luta desesperada pelo sobrevivência dos advogados, o Poder Judiciário inevitavelmente ruiria.

Um simples aumento de 30% no número de demandas seria suficiente para paralisar todas as primeiras instâncias do Brasil de plano, e em pouquíssimo tempo os tribunais. E aqui assumo que um aumento de 30% das demandas como um percentual altamente conservador.

Se o sistema jurisdicional para, se a profissão de advogado entra em descrédito, se o estado não consegue oferecer a justiça aos seus cidadãos, o papel desempenhado pelo Poder Judiciário deixaria de representar seu papel. E, neste caso, o jurisdicionado, passaria a buscar em si mesmo a solução de seus conflitos: a explosão desenfreada da autotutela e seus consectários de desestabilização social.

Pode parecer uma perspectiva radical e exagerada, mas não é. Sem o Poder Judiciário, emperrado e inoperante, a pacificação social decorrente da prestação jusrisdicional é mero corolário lógico. O Estado não pode se fazer ausente! O Estado tem de ser operacional e tem de desempenhar seu papel. A saturação do sistema leva inexoravelmente à paralização das funções da Justiça.

Inevitável.

D) Hipertrofia descontrolada da estrutura do Poder Judiciário, aumentando de forma dramática os custos com este Poder, que terá de crescer para atender as demandas, afetando gravemente o orçamento da União e os aspectos macroeconômicos da economia.

Uma reação, obviamente, seria esboçada, mas a um preço exorbitante e impossível de calcular. O Poder Judiciário transforma-se-ia em um colosso desproporcional para atender a uma nação de causídicos, a maior do mundo. Isso geraria um impacto substancial no orçamento da União, com um correlato aumento da carga tributária.

Afinal, o Estado não pode se fazer ausente...

Acredito convictamente que o fim do Exame de Ordem representará a implosão completa do Poder Judiciário e a destruição da profissão de advogado, sem contar o grave impacto nos direitos de milhões de brasileiros, leigos, incapazes de distinguir e selecionar o joio do trigo.

Não me surpreenderia, dentro deste contexto futuro e hipotético, se cuspir no chão ou enfiar o dedo no nariz não se transformariam em crime para atender às necessidades profissionais de uma legião de quatro milhões de advogados. Provavelmente sim.

Eduardo Cunha, portanto, presta um desserviço ao seu país ao tentar acabar com a prova da OAB.

Quanto a isto, o Dr. Felipe Santa Cruz está recoberto de razão.