Segue um texto, publicado aqui o Blog ainda no ano passado, sobre a introdução da disciplina Filosofia do Direito no Exame de Ordem.
Presidente da OAB confirma Filosofia do Direito na próxima prova objetiva
Análise do edital do X Exame de Ordem Unificado! OAB introduz Filosofia do Direito e muda horário de aplicação das provas
Quais disciplinas cederão lugar para Filosofia do Direito no X Exame de Ordem?
Já naquela época a crítica era contrária a tal iniciativa. Existe a presunção de que a introdução desta nova disciplina ira "incrementar" o juízo crítico dos estudantes de Direito. Bom, seguramente, por força do Exame, Filosofia será mais abordada agora nas facudadaes: mero reflexo de uma pressão feita de fora para dentro, da prova para as instituições, com o seu natural impacto no mercado de professores e editorial.
O Exame de Ordem tem esse poder.
Entretanto, como instrumento finalístico para despertar o espírito crítico dos examinandos, a eficácia desta inovação é altamente questionável. Confiram o texto abaixo e, depois, minhas considerações sobre este tema.
Pensar, refém da técnica: o exame de ordem e a filosofia do direito
*Por Murilo Duarte Costa Corrêa, Doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito (USP). Mestre em Filosofia e Teoria do Direito (UFSC).
Ontem, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil anunciou que incluirá Filosofia do Direito como disciplina nos próximos exames da Instituição a partir de 2013. O exame nacional, elaborado e organizado pela Fundação Getúlio Vargas, consiste, hoje, de duas etapas: uma prova preambular objetiva, de caráter generalista, com questões que abrangem as diversas áreas da dogmática jurídica e, não raro, favorecem mais a memorização de conteúdos e enunciados normativos que os raciocínios problematizantes e propriamente jurídicos; uma segunda etapa, escrita, em que o candidato responde a questões discursivas curtas e elabora uma peça sobre um problema dado, em que se avaliam a técnica de redação, argumentação e outros elementos relevantes para o desempenho da profissão.
No entanto, é de longa data a curiosa e ingenuamente festejada tentativa de colonizar os espaços de pensamento crítico no direito: em 2010, foram as disciplinas de Direitos Humanos e Ética; agora, em 2012, seguindo uma tendência em boa parte encampada por muitos concursos públicos, o Exame de Ordem disciplina e sobrecodifica um dos últimos territórios de resistência ao sequestro do pensamento jurídico pela técnica: a Filosofia do Direito.
Os efeitos da iniciativa de 2010, sob este ponto de vista, são exemplares. O que aconteceu à cadeira de Direitos Humanos, de 2010 para cá, foi sua transformação em uma disciplina acrítica, reativa, retoricamente esvaziada, de mera enunciação de proposições normativas internacionais isto, quando não se interpretam tratados internacionais à luz da jurisprudência interna, aberração mais contumaz na maior parte das faculdades de direito, a fim de cumprir a determinação da resolução do Conselho Federal da Ordem dos Advogados e incrementar os índices das instituições.
É interessante notar que nem mesmo as instituições públicas têm escapado a essa lógica perversa. Não à toa, a classificação da Faculdade de Direito da UFPR em 34ª colocada no VI Exame de Ordem (atrás de UEM, 14ª e UEL, 16ª), divulgado aproximadamente há uma quinzena, tornou-se objeto de preocupação de alunos e professores o que não faz senão demonstrar a eficácia da estratégica desempenhada também pela Ordem, de sequestro do pensamento pela técnica, mesmo em uma das escolas mais críticas do Brasil.
Com relação à Filosofia, sua inclusão no Exame despertará nos alunos uma preocupação pragmática e instrumental com a disciplina que, convenientemente, dispensa os professores do trabalho de inseminar nos alunos o amor pelo pensamento e a crítica como atividade prática e política educacional. Com o exame, a Filosofia do Direito ingressa no rol das disciplinas meramente úteis, cuja utilidade está provada de antemão e inexoravelmente, contra tudo o que constitui a natureza essencialmente árida e problemática do pensamento: aquilo que ele tem de ascese transformadora de horizontes existenciais dos juristas e, com eles, da mundanidade.
Paulatinamente, a OAB e seu exame normalizam todos os espaços de pensamento no Direito. A Filosofia do Direito, uma das últimas territorialidades capaz de descodificar o tecnicismo imposto pelo Exame, deve passar, agora, para o lado do código contra o qual, historicamente, agia. Na prática - aquela, de que os juristas mais superficiais tanto gostam -, a Ordem molda indiretamente os currículos universitários, quando são a universidades que deveriam pautar os exames de Ordem e concursos públicos. Isso é resultado de um duplo influxo: a franca decadência das instituições acadêmicas, que se tornam infatigável espaço de repetições medíocres, e a obturação das pequenas possibilidades de desconstituir e escapar a este código. O fato de que universidades comecem a discutir temas que deveriam soar paradoxais a qualquer um como o Capitalismo Humanista, por exemplo - deveria bastar como indício de o quanto essa sobrecodificação das universidades, pelas instituições, é paradoxal.
Cada disciplina propedêutica incluída no Exame representa um golpe nas potências críticas e inventivas do Direito. Não se trata, de forma alguma, do reforço do interesse pelos direitos humanos, pela ética ou pela filosofia jurídica: a instituição conjura e captura mais uma possibilidade de pensamento - e, assim, o pensamento se torna um pouco mais refém, sequestrado pela técnica.
Os horizontes de resistência e criação, contudo, permanecem os mesmos: o trabalho sobre si, a clínica social, a produção desejante, a criação de conceitos e novos planos de consistência, a desconstituição, a crítica, radical e urgente, e o retrabalho comum sobre a crítica jurídica; com ela, contra ela e para além dela. A esse conjunto de trabalhos - que não exige uma postura apenas dos filósofos do direito, mas dos pensadores de todas as humanidades - foi que chamei, certa vez, filosofia do direito na imanência.
Fonte: A navalha de Dalí
------
Muito bem!
O texto, muito coerente e bem concatenado, reflete um posicionamento que eu já defendia: o Exame de Ordem não vai ficar melhor com a introdução da Filosofia do Direito, e sim a Filosofia vai ser pasteurizada, amoldada, reduzida a um punhado de proposições dogmáticas memorizáveis, exatamente aos moldes do exigido na prova:
OAB poderá incluir na próxima 2ª feira Filosofia do Direito no Exame de Ordem
OAB incluirá Filosofia do Direito no primeiro Exame de Ordem de 2013
O atual modelo da prova foi construído sob o prisma de se avaliar, na essência, as disciplinas do Eixo de Formação Profissional, não as disciplinas propedêuticas:
A estrutura da prova, tal como bem aduziu autor do texto acima, "favorecem mais a memorização de conteúdos e enunciados normativos que os raciocínios problematizantes e propriamente jurídicos". A introdução das disciplinas do Eixo de Formação Fundamental teria seus efeitos mitigados em função da natureza dogmática para prova objetiva.
Aqui é interessante reproduzir a manifestação do doutor e professor do Departamento de Educação da UFSCar Universidade Federal de São Carlos, João Virgílio Tagliavini, em entrevista para o UOL, que elaborou um consistente trabalho sobre a natureza da prova objetiva da OAB:
"Em média, 85% das questões são respondidas com memorização da lei. Esse tipo de teste hoje já é inútil", disse. "Queremos uma avaliação que verifique mais a capacidade de pensamento, compreensão e espirito crítico."
O próprio modelo de formulação das perguntas há muito está em xeque mas detém a complacência do CFOAB. Sem sombra de dúvida, um grande percentual das questões são meras reproduções do conteúdo das leis, e isso está no cerne de muitas das controvérsias envolvendo a prova, principalmente desenvolvidas em torno das "pegadinhas" e de uma prova que "não avalia nada".
O professor João Virgílio, em sua obra Exame de Ordem, uma visão crítica, editado pela UfsCar (2010), abordou bem o tema. No estudo, a equipe teve o cuidado de analisar o conteúdo e a formulação da prova sob a taxonomia de Bloom.
A taxonomia de Bloom é uma estrutura de organização hierárquica de objetivos educacionais. A classificação proposta por Bloom dividiu as possibilidades de aprendizagem em três grandes domínios:
- o cognitivo, abrangendo a aprendizagem intelectual;
- o afetivo, abrangendo os aspectos de sensibilização e gradação de valores;
- o psicomotor, abrangendo as habilidades de execução de tarefas que envolvem o organismo muscular.
Cada um destes domínios tem diversos níveis de profundidade de aprendizado. Por isso a classificação de Bloom é denominada hierarquia: cada nível é mais complexo e mais específico que o anterior. O terceiro domínio não foi terminado, e apenas o primeiro foi implementado em sua totalidade.
E foi sob o primeiro, o cognitivo, que a equipe da UfsCar laborou. Vejamos o quadro hierárquico do domínio cognitivo:
Vejamos o escalonamento do grau de dificuldade da taxonomia, em um gráfico retirado do livro do Dr. João Virgílio Tagliavini:A equipe da UfsCar, em seu trabalho, fez o seguinte raio-x do Exame:
Em relação às fontes do direito:
a) 75,75% das questões enfatizam a memorização das normas;
b) 13,75% são questões com foco na doutrina;
c) 1% abordam aspectos jurisprudenciais e;
d) 9,5% abordam mais de uma fonte do direito.
Em relação às exigências de cognição:
a) 57,25% das questões estão no 1º degrau da taxonomia de Bloom, o conhecimento (o mais simples);
b) 26,5% das questões estão no 2º degrau, que exige a compreensão;
c) 5,75% no 3º degrau, o de capacidade de análise;
d) 2% no 4º degrau, o de capacidade de síntese e;
e) 1% no 5º degrau, o da capacidade de avaliação.
É nítido, no estudo, a correlação entre as fontes do direito e ao tipo de exigência cognitiva.
Questões cuja estrutura decorre da mera utilização da letra da lei correspondem às questões cujo o grau de cognição é o mais simples, o 1º da taxonomia de Bloom.
Ou seja, a prova da OAB, em termos de demonstração de capacidade cognitiva, compreensão de institutos ou mesmo puro raciocínio jurídico, seria uma prova inadequada. O simples uso da memória, do "decoreba", propiciaria ao candidato um desempenho adequado na prova, resultando em sua aprovação, sem uma análise mais profunda de suas capacidades intelectuais.
Pergunta-se: a introdução da Filosofia do Direto na prova vai mudar o pensamento crítico dos examinandos ou a disciplina em si vai ser "engolida" pela logica do sistema?
A resposta está o texto do professor Murilo Duarte Costa Corrêa.