Quarta, 6 de junho de 2012
*Por Murilo Duarte Costa Corrêa, Doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito (USP). Mestre em Filosofia e Teoria do Direito (UFSC).
Ontem, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil anunciou que incluirá Filosofia do Direito como disciplina nos próximos exames da Instituição a partir de 2013. O exame nacional, elaborado e organizado pela Fundação Getúlio Vargas, consiste, hoje, de duas etapas: uma prova preambular objetiva, de caráter generalista, com questões que abrangem as diversas áreas da dogmática jurídica e, não raro, favorecem mais a memorização de conteúdos e enunciados normativos que os raciocínios problematizantes e propriamente jurídicos; uma segunda etapa, escrita, em que o candidato responde a questões discursivas curtas e elabora uma peça sobre um problema dado, em que se avaliam a técnica de redação, argumentação e outros elementos relevantes para o desempenho da profissão.
No entanto, é de longa data a ? curiosa e ingenuamente ? festejada tentativa de colonizar os espaços de pensamento crítico no direito: em 2010, foram as disciplinas de Direitos Humanos e Ética; agora, em 2013, seguindo uma tendência em boa parte encampada por muitos concursos públicos, o Exame de Ordem disciplina e sobrecodifica um dos últimos territórios de resistência ao sequestro do pensamento jurídico pela técnica: a Filosofia do Direito.
Os efeitos da iniciativa de 2010, sob este ponto de vista, são exemplares. O que aconteceu à cadeira de Direitos Humanos, de 2010 para cá, foi sua transformação em uma disciplina acrítica, reativa, retoricamente esvaziada, de mera enunciação de proposições normativas internacionais ? isto, quando não se interpretam tratados internacionais à luz da jurisprudência interna, aberração mais contumaz ? na maior parte das faculdades de direito, a fim de cumprir a determinação da resolução do Conselho Federal da Ordem dos Advogados e incrementar os índices das instituições.
É interessante notar que nem mesmo as instituições públicas têm escapado a essa lógica perversa. Não à toa, a classificação da Faculdade de Direito da UFPR em 34ª colocada no VI Exame de Ordem (atrás de UEM, 14ª e UEL, 16ª), divulgado aproximadamente há uma quinzena, tornou-se objeto de preocupação de alunos e professores ? o que não faz senão demonstrar a eficácia da estratégica desempenhada também pela Ordem, de sequestro do pensamento pela técnica, mesmo em uma das escolas mais críticas do Brasil.
Com relação à Filosofia, sua inclusão no Exame despertará nos alunos uma preocupação pragmática e instrumental com a disciplina que, convenientemente, dispensa os professores do trabalho de inseminar nos alunos o amor pelo pensamento e a crítica como atividade prática e política educacional. Com o exame, a Filosofia do Direito ingressa no rol das disciplinas meramente úteis, cuja utilidade está provada de antemão e inexoravelmente, contra tudo o que constitui a natureza essencialmente árida e problemática do pensamento: aquilo que ele tem de ascese transformadora de horizontes existenciais dos juristas e, com eles, da mundanidade.
Paulatinamente, a OAB e seu exame normalizam todos os espaços de pensamento no Direito. A Filosofia do Direito, uma das últimas territorialidades capaz de descodificar o tecnicismo imposto pelo Exame, deve passar, agora, para o lado do código contra o qual, historicamente, agia. Na prática - aquela, de que os juristas mais superficiais tanto gostam -, a Ordem molda indiretamente os currículos universitários, quando são a universidades que deveriam pautar os exames de Ordem e concursos públicos. Isso é resultado de um duplo influxo: a franca decadência das instituições acadêmicas, que se tornam infatigável espaço de repetições medíocres, e a obturação das pequenas possibilidades de desconstituir e escapar a este código. O fato de que universidades comecem a discutir temas que deveriam soar paradoxais a qualquer um ? como o ?Capitalismo Humanista?, por exemplo - deveria bastar como indício de o quanto essa sobrecodificação das universidades, pelas instituições, é paradoxal.
Cada disciplina propedêutica incluída no Exame representa um golpe nas potências críticas e inventivas do Direito. Não se trata, de forma alguma, do reforço do interesse pelos direitos humanos, pela ética ou pela filosofia jurídica: a instituição conjura e captura mais uma possibilidade de pensamento - e, assim, o pensamento se torna um pouco mais refém, sequestrado pela técnica.
Os horizontes de resistência e criação, contudo, permanecem os mesmos: o trabalho sobre si, a clínica social, a produção desejante, a criação de conceitos e novos planos de consistência, a desconstituição, a crítica, radical e urgente, e o retrabalho comum sobre a crítica jurídica; com ela, contra ela e para além dela. A esse conjunto de trabalhos - que não exige uma postura apenas dos filósofos do direito, mas dos pensadores de todas as humanidades - foi que chamei, certa vez, filosofia do direito na imanência.
Fonte: A navalha de Dalí
O texto, muito coerente e bem concatenado por sinal, reflete um posicionamento que eu já defendia: o Exame de Ordem não vai ficar melhor com a introdução da Filosofia do Direito, e sim a Filosofia vai ser pasteurizada, amoldada, reduzida a um punhado de proposições dogmáticas memorizáveis, exatamente aos moldes do exigido na prova:
OAB poderá incluir na próxima 2ª feira Filosofia do Direito no Exame de Ordem
OAB incluirá Filosofia do Direito no primeiro Exame de Ordem de 2013
O atual modelo da prova foi construído sob o prisma de se avaliar, na essência, as disciplinas do Eixo de Formação Profissional, não as disciplinas propedêuticas:
A estrutura da prova, tal como bem aduziu autor do texto acima, "favorecem mais a memorização de conteúdos e enunciados normativos que os raciocínios problematizantes e propriamente jurídicos". A introdução das disciplinas do Eixo de Formação Fundamental teria seus efeitos mitigados em função da natureza dogmática para prova objetiva.
Aqui é interessante reproduzir a manifestação do doutor e professor do Departamento de Educação da UFSCar Universidade Federal de São Carlos, João Virgílio Tagliavini, em entrevista para o UOL, que elaborou um consistente trabalho sobre a natureza da prova objetiva da OAB:
"Em média, 85% das questões são respondidas com memorização da lei. Esse tipo de teste hoje já é inútil", disse. "Queremos uma avaliação que verifique mais a capacidade de pensamento, compreensão e espirito crítico."
O próprio modelo de formulação das perguntas há muito está em xeque mas detém a complacência do CFOAB. Sem sombra de dúvida, um grande percentual das questões são meras reproduções do conteúdo das leis, e isso está no cerne de muitas das controvérsias envolvendo a prova, principalmente desenvolvidas em torno das "pegadinhas" e de uma prova que "não avalia nada".
O professor João Virgílio, em sua obra Exame de Ordem, uma visão crítica, editado pela UfsCar (2010), abordou bem o tema. No estudo, a equipe teve o cuidado de analisar o conteúdo e a formulação da prova sob a taxonomia de Bloom.
A taxonomia de Bloom é uma estrutura de organização hierárquica de objetivos educacionais. A classificação proposta por Bloom dividiu as possibilidades de aprendizagem em três grandes domínios:
- o cognitivo, abrangendo a aprendizagem intelectual;
- o afetivo, abrangendo os aspectos de sensibilização e gradação de valores;
- o psicomotor, abrangendo as habilidades de execução de tarefas que envolvem o organismo muscular.
Cada um destes domínios tem diversos níveis de profundidade de aprendizado. Por isso a classificação de Bloom é denominada hierarquia: cada nível é mais complexo e mais específico que o anterior. O terceiro domínio não foi terminado, e apenas o primeiro foi implementado em sua totalidade.
E foi sob o primeiro, o cognitivo, que a equipe da UfsCar laborou. Vejamos o quadro hierárquico do domínio cognitivo:
Vejamos o escalonamento do grau de dificuldade da taxonomia:A equipe da UfsCar, em seu trabalho, fez o seguinte raio-x do Exame:
Em relação às fontes do direito:
a) 75,75% das questões enfatizam a memorização das normas;
b) 13,75% são questões com foco na doutrina;
c) 1% abordam aspectos jurisprudenciais e;
d) 9,5% abordam mais de uma fonte do direito.
Em relação às exigências de cognição:
a) 57,25% das questões estão no 1º degrau da taxonomia de Bloom, o conhecimento (o mais simples);
b) 26,5% das questões estão no 2º degrau, que exige a compreensão;
c) 5,75% no 3º degrau, o de capacidade de análise;
d) 2% no 4º degrau, o de capacidade de síntese e;
e) 1% no 5º degrau, o da capacidade de avaliação.
É nítido, no estudo, a correlação entre as fontes do direito e ao tipo de exigência cognitiva.
Questões cuja estrutura decorre da mera utilização da letra da lei correspondem às questões cujo o grau de cognição é o mais simples, o 1º da taxonomia de Bloom.
Ou seja, a prova da OAB, em termos de demonstração de capacidade cognitiva, compreensão de institutos ou mesmo puro raciocínio jurídico, seria uma prova inadequada. O simples uso da memória, do "decoreba", propiciaria ao candidato um desempenho adequado na prova, resultando em sua aprovação, sem uma análise mais profunda de suas capacidades intelectuais.
Pergunta-se: a introdução da Filosofia do Direto na prova vai mudar o pensamento crítico dos examinandos ou a disciplina em si vai ser "engolida" pela logica do sistema?
A resposta está o texto do professor Murilo Duarte Costa Corrêa.