Os brasileiros sabem argumentar? O ?Caso Thays? e a prova da OAB

Quarta, 7 de maio de 2014

Segue um texto muito interessante de José Rodrigo Rodriguez, filósofo do direito, poeta, pesquisador e professor (CEBRAP/Direito GV). Seu principal tema é a diversidade humana e seus conflitos. É autor de ?Como Decidem as Cortes?? e ?Peixe Insolúvel?.

Os brasileiros sabem argumentar? O ?Caso Thays? e a prova da OAB

O mundo jurídico debate há tempos a qualidade dos concursos públicos e da prova da OAB. As críticas se concentram na suposta baixa qualidade das questões, que exigiriam apenas a capacidade de decorar, nunca reflexão.

Para passar em um concurso bastaria ser bem ?adestrado?, ou seja, ser capaz de reproduzir o máximo de informação sem crítica.

Thays Castro Guimarães, aluna do segundo ano de direito em Rondônia, 18 anos, acaba de passar na OAB. Alguns críticos acreditam que este fato confirma o diagnóstico acima: trata-se de um pequeno ?escândalo? que está dando o que falar.

Em entrevista a aluna diz que estudou para a prova por três meses, lendo o Código de Ética, o Estatuto da OAB e livros de resumo voltados para concursos. Além disso, fez muitas questões dos exames anteriores.

Para ter sucesso na prova, aparentemente, ela não precisou de nada do que aprendeu em seu pouco tempo de curso universitário.

O Professor Lênio Streck, Titular da UNISINOS, em sua coluna no CONJUR, com a contundência e a verve de sempre, tira diversas consequências do acontecido (leia aqui). Procura mostrar, principalmente, como os concursos falham na seleção dos candidatos e as faculdades falham em ensinar.

Sem tirar o mérito da aluna, o Professor afirma que estamos vivendo uma era de simplificação extrema, marcada por um direito que se apresenta como simplório, ?mastigadinho?, sem nenhuma sofisticação.

Viveríamos, de acordo com o Professor, uma verdadeira degradação da cultura jurídica brasileira.

Peço licença para discordar do ilustre Professor, a quem admiro muito. Mas acho que nosso diagnóstico difere em alguns pontos.

Eu não acho que o ?Caso de Thays? revele a ?degradação? da cultura jurídica nacional. E nem que os concursos públicos ?errem? ao escolher o caminho da decoreba.

Nosso direito é assim: nunca valorizou a capacidade reflexiva e argumentativa para a sua reprodução. Esta é uma característica estrutural e antiga.

Para operar o direito brasileiro, desde sempre, não é preciso ser um estudioso sofisticado e conhecer teorias complexas. Basta argumentar com alguma destreza e citar o texto das regras, súmulas e enunciados pertinentes.

Não acho que esse seja uma característica exclusiva do Brasil. Não me consta, por exemplo, que os juízes e juízas estrangeiras sejam grandes teóricas do direito. Mas não há espaço para falar disso aqui.

Seguindo o fio do argumento, prova de que a argumentação é pouco importante no Brasil é o fato de que nossos tribunais, desde sempre, decidam por maioria de votos.

Todos eles, do STF aos tribunais estaduais, votam por maioria e não organizam seus argumentos em um voto vencedor para expressar de forma organizada a opinião daquela corte.

Cada juiz e juíza nos tribunais está autorizada a argumentar e votar do seu jeito, de acordo com o seu estilo pessoal. Eles e elas só precisam entrar em acordo a respeito do resultado. Nunca sobre a justificativa.

Resultado: os argumentos utilizados são pouco importantes para o resultado final. No limite, podemos ter decisões unânimes fundadas nas razões as mais disparatadas.

É justamente por esta razão que nossa jurisprudência se faz via súmulas e enunciados e não via argumentos organizados. Produzimos segurança jurídica padronizando o resultado dos julgamentos e não argumentos.

Por isso mesmo, não temos um tecido argumentativo que sustente a justificativa das decisões ao longo do tempo. As decisões dos tribunais estão muito ligadas à pessoa dos magistrados e magistradas.

Não é por outra razão que alguns defendem ser possível mudar a recente decisão do STF sobre a Lei da Anistia. Como a corte mudou sua composição recentemente, o jogo está aberto de novo. Pouco importam as justificativas do outro julgamento.

Explicação para os leigos: súmulas e enunciados são proposições de valor oficial, emitidas pelos Tribunais, que enunciam em abstrato a solução de um problema jurídico e vinculam a decisão de casos futuros.

Por exemplo: ?Para efeito de aposentadoria especial de professores, não se computa o tempo de serviço prestado fora da sala de aula? (Súmula 726 do STF). Só isso.

Como se chegou a este resultado? Não há justificativa oficial organizada.

Conclusão: adianta pouco criticar a suposta baixa qualidade dos concursos e do material didático voltado para eles e/ou defender estudos mais sofisticados de filosofia e teoria da argumentação nas Faculdades.

No Brasil, a argumentação é pouco importante de forma geral. E não apenas no campo do Direito, como mostram clássicos brasileiros como ?Raízes do Brasil? de Sérgio Buarque de Hollanda.

O buraco é mais embaixo.

O interessado em mudar essa situação terá que alterar a face do modelo jurídico brasileiro. E não apenas dele.

Parte da solução, nesse ponto eu concordo com o Professor Streck, é transformar os estudos e a prática das diversas áreas do direito.

Como tem tentado fazer, de forma quase solitária, faz muitos anos, professores como Luiz Edson Fachin, Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná.

Para os que se interessarem pelo tema, o Prof. Fachin tem procurado reconstruir uma serie de categorias fundamentais do direito civil para além de seu significado estitamente técnico. Ele desenvolve uma espécie de ?filosofia concreta? que reflete sobre o significado das categorias jurídicas e a sobre a sua função social.

Eu não acredito que o estudo da filosofia do direito sozinha, desligada dos problemas jurídicos concretos, seja capaz de mudar nosso direito.

Pois é muito fácil para um jurista brasileiro, por exemplo, ler Franz Neumann, autor de minha predileção, apenas para utilizá-lo como citação erudita. Sem se deixar tocar intelectualmente por ele. Sem fazê-lo repercutir, de fato, sobre seu modo de pensar os casos concretos.

Se desligarmos a filosofia do direito da dogmática jurídica, se encararmos estes dois campos como rigorosamente separados, receio que nada vá caminhar.

Seja como for, a questão de base parece ser a seguinte: Como transformar a argumentação e o debate racional em uma prática social generalizada? Uma prática cotidiana que afaste para as margens a utilização de argumentos de autoridade?

De novo, a filosofia pode ser muito perigosa aqui. Ninguém deve pensar e decidir assim ou assado porque Neumann disse isso ou aquilo. Ou porque Habermas, Dworkin ou Alexy pensam desta ou daquela maneira.

Estes autores são importantes, mas não como autoridades e sim como elementos para construir uma prática social argumentativa generalizada no Brasil. Processo que certamente passa por outros fatores e estruturas, muito além do simples estudo de teorias.

Por exemplo, pela democratização radical das relações sociais. Pela superação de estruturas autoritárias que ainda marcam nossa realidade.

Temos que nos perguntar, no campo do direito: queremos de fato um Judiciário em que os juízes e as juízas podem argumentar como quiserem? Devemos criar regras para mudar esta situação?

Nosso direito tem vantagens e desvantagens, como procuro mostrar no recém-publicado ?Como decidem as cortes?? (veja aqui). Mas, independentemente de nossa opinião sobre o modelo jurídico brasileiro, temos que enfrenta-lo de frente.

E fazer isso, acredito, exige que lidemos com os fenômenos estruturais que apontei aqui.

Afinal, se nosso direito não se reproduz argumentativamente, faz algum sentido cobrar dos candidatos de concurso e da OAB sofisticadas habilidades teóricas e argumentativas?

Como elaborar questões objetivas, que não sejam objeto de centenas de recursos por parte dos candidatos, sobre habilidades argumentativas que não são utilizadas na realidade?

Em minha opinião, se nosso direito mudar, será em função do incômodo dos agentes sociais diante da impossibilidade de compreender, afinal, porque os juízes decidem desta e não daquela maneira.

Uma situação assim pode alimentar um processo de luta por justificação. Uma luta política por mais racionalidade, que pode resultar em mudanças efetivas no desenho institucional de nosso Judiciário.

Mas esse já é assunto para outro artigo.

PS: Deixo aqui meus parabéns para a aluna Thays. Espero que ela tenha muito sucesso no restante de seu curso e em sua vida profissional. E que o seu feito, notável, ajude-nos a debater os eventuais problemas do direito brasileiro em bases cada vez mais racionais.

Fonte: Terra Magazine