Sexta, 26 de junho de 2020
Usar do conhecimento jurídico em proveito próprio, e não em benefício do cliente, viola o dever de atuar com a boa-fé, tal como previsto no Código de Processo Civil. O entendimento é do juiz Marcos Vinícius Barroso, da 12ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, ao ordenar que escritório de advocacia deposite R$ 1,9 milhão em favor de ex-cliente que teria sido lesada pela banca. A decisão foi proferida na última terça-feira (23/6).
O caso concreto envolve um escritório e uma ex-empregada do Itaú. A banca foi responsável, em 2019, por atuar em um acordo entre a cliente e a instituição financeira.
Ocorre que, segundo os autos, o escritório omitiu da mulher informações referentes às tratativas com o banco. Ela diz que, em julho do ano passado, foi informada pelos patronos que o valor de sua causa girava em torno de R$ 700 mil e que demoraria cerca de cinco anos até que o banco pagasse o valor.
Posteriormente, o escritório ofereceu R$ 360 mil para obter os direitos sobre o crédito trabalhista da cliente. Ela acabou aceitando. No entanto, de acordo com a decisão, a banca já sabia havia mais de um mês que o acordo mínimo oferecido pelo Itaú era de R$ 1,5 milhão.
"A simples leitura do relatório desta decisão demonstra de forma inconteste que a (...) [banca] sabia, desde maio de 2019, da proposta inicial de R$ 1,5 milhão líquidos à reclamante para fins de acordo por parte do Banco Itaú", afirma a decisão.
"Todavia", prossegue o juiz, "o que mais chamou a atenção deste magistrado foram os registros dos autos que demonstram, claramente, que no mesmo dia 15 de julho de 2019, enquanto a inocente reclamante perguntava se conseguia na causa dela R$ 359 a R$ 400 mil, o escritório já tinha recusado a proposta de R$ 1,5 milhão líquidos, de maio, e feito uma contraproposta de R$ 2,5 milhões líquidos".
Depois da contraproposta, o escritório conseguiu fechar um acordo de R$ 1,9 milhão com o banco. O valor não foi informado à autora do processo. O acordo entre o Itaú e o escritório foi assinado no mesmo mês em que a mulher vendeu os créditos trabalhistas por um valor inferior a 20% do acordo entabulado entre a banca e o banco.
"Concluo que a reclamante foi vítima de ardil perpetrado (...) [pela banca citada na decisão], escritório este que omitiu propositalmente informações essenciais e importantes para que ela pudesse formar a sua real convicção sobre a venda ou não de seus créditos. Concluo, ainda, que fizeram uso do processo para alcançar objetivo ilegal (maximização de ganhos às custas da cliente que neles confiava, hipossuficiente), sendo que a forma empregada pode configurar o delito do artigo 355, do Código Penal", afirma a decisão.
Segundo a previsão mencionada pelo magistrado, "trair, na qualidade de advogado ou procurador, o dever profissional, prejudicando interesse, cujo patrocínio, em juízo, lhe é confiado", tem pena de detenção de seis meses a três anos, e multa.
Além de ordenar que o escritório deposite R$ 1,9 milhão em conta à disposição da 12ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, o juiz aplicou à banca multa de 10% sobre o valor corrigido da causa, em favor da reclamante, por litigar de má-fé.
Também oficiou o Ministério Público do Trabalho, para que a instituição apure se houve prática semelhante com outros clientes; e Ministério Público Federal, Receita Federal, Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e Polícia Federal, para investigar possíveis omissões fiscais aptas a configurarem crime contra a ordem tributária.
Compra de créditos
A compra de créditos trabalhistas por advogados em negociações judiciais preocupa a Justiça do Trabalho. Em agosto de 2017, por exemplo, o Tribunal Superior do Trabalho enviou consulta ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil para saber se a prática infringe algum mandamento ético da categoria.
Os contratos de cessão de créditos passaram a gerar inquietação depois que representantes das centrais de conciliação dos tribunais regionais do trabalho foram ao TST reclamar. A venda de créditos, afirmam, praticamente inviabiliza a negociação, porque o detentor do direito deixa de ter interesse na causa. O comprador do crédito, por outro lado, tem interesse apenas no valor que tiver a receber.
A compra se tornou um negócio lucrativo: os juros incidentes sobre os créditos trabalhistas são de 12% ao ano e, de acordo com a Orientação Jurisprudencial 400 da Subseção de Dissídios Individuais do TST, esse dinheiro não compõe a base de cálculo do Imposto de Renda. Desta forma, a aquisição rende mais que qualquer aplicação de renda fixa, que usa os juros da Selic, fora o desconto de Imposto de Renda e IOF.
"A cessão de crédito é instituto previsto no artigo 286 e seguintes do Código Civil e sempre teve sua aplicabilidade controvertida na Justiça do Trabalho. Inicialmente, a Consolidação dos Provimentos da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho (CGTJ), publicada em 28 de outubro de 2008, trazia expressa vedação em seu artigo 100, no sentido de que a cessão de crédito não se aplicava aos créditos trabalhistas", explica Ricardo Calcini, especialista em relações trabalhistas e sindicais e professor de Direito do Trabalho da FMU.
Ele conta que segundo a jurisprudência trabalhista que se formou até 2019, caso fosse autorizada a cessão de créditos trabalhistas a terceiros estranhos à relação de emprego, haveria a transferência de créditos de natureza alimentar, o que é vedado pelo princípio da irrenunciabilidade.
"Acontece que na última versão da Consolidação dos Provimentos da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, datada de 19 de dezembro de 2019, deixou de haver previsão quanto à restrição da cessão de crédito trabalhista e, consequentemente, da inaplicabilidade do artigo 286 do Código Civil à justiça do Trabalho", afirma. Isso fez com que houvesse uma maior permissibilidade na venda de créditos, explica.
Outro lado
A ConJur entrou em contato com o escritório, que confirmou o teor da decisão a partir de cópia da sentença encaminhada pela reportagem. Em nota, a banca afirmou que foi surpreendida e que as provas e fatos devidamente apresentados nos autos não foram observados pela 12ª Vara do Trabalho da capital mineira. Os advogados também informaram que irão recorrer.
"Desde logo, vale registrar que se trata de decisão proferida por foro incompetente e que está alicerçada em suposições desprovidas de suporte fático probatório, o que será cabalmente demonstrado nos autos", afirma o documento.
Veja a nota na íntegra:
Considerando a ampla divulgação de decisão proferida pelo juízo da 12ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, o escritório vem a público prestar os seguintes esclarecimentos:
O negócio jurídico celebrado entre o escritório e sua então cliente não possui qualquer mácula ou vício e decorreu de iniciativa da reclamante, assistida por seu pai. A partir da transação civil entabulada entre as partes, o escritório assumiu todo o risco da reclamação em curso perante a Justiça do Trabalho.
O escritório foi surpreendido com a referida decisão, que não observou os fatos e provas devidamente apresentadas nos autos. Por isso, causam perplexidade as conclusões equivocadas nela contidas.
A banca possui 12 anos de atuação na área trabalhista, com expertise na defesa dos interesses dos trabalhadores bancários, com alto índice de assertividade, decorrente da elevada capacidade técnica do seu quadro de advogados. São mais de 4 mil clientes atendidos com comprovada satisfação.
Por fim, cumpre frisar que a decisão de primeira instância será objeto de recurso por parte do escritório, oportunidade em que será demonstrada sua incorreção, eis que nenhuma conduta ilegal foi praticada.
Desde logo, vale registrar que se trata de decisão proferida por foro incompetente e que está alicerçada em suposições desprovidas de suporte fático probatório, o que será cabalmente demonstrado nos autos.
Fonte: Conjur