Exame de Ordem: controle de mercado ou avaliação profissional?

Terça, 14 de dezembro de 2010

Por Frederico de Almeida*

*** Em sua mais recente edição realizada pela prestigiada FGV (Fundação Getúlio Vargas), o Exame de Ordem, mantido pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) como condição para o exercício profissional, é alvo de críticas e suspeitas de erros, que poderiam geram, inclusive, sua anulação.

Não fossem as esperanças depositadas na seriedade e na competência da FGV para a aplicação da prova ? substituindo o igualmente prestigiado (ao menos até denúncias de fraude) Cespe (Centro de Seleção e Promoção de Eventos), da Universidade de Brasília, as críticas não seriam nenhuma novidade. Há tempos o Exame de Ordem é contestado pela sua efetiva capacidade de avaliar as habilidades profissionais, e por sua suposta falta de competência, lisura e objetividade na seleção de novos advogados.

A unificação de um Exame de Ordem nacional foi uma decisão controvertida do Conselho Federal da OAB, e que encontrou resistências em várias seccionais. Um dos argumentos para a unificação do Exame nacional foi justamente a de refutar críticas e suspeitas quanto à lisura e à seriedade da prova, supostamente ameaçadas por interesses locais escusos, indevidamente representados nas seccionais e nos responsáveis pela organização da avaliação. As denúncias que atingiram a Cespe, e agora, ainda que com menor intensidade, a FGV não se diferenciam em nada, de maneira geral, das críticas anteriores que atingiam os Exames locais.

A diferença é que, num Exame nacional, esses problemas tendem a ganhar repercussão maior. Além disso, a escala de um Exame nacional, com todas as suas implicações em termos de logística para produção, aplicação e correção das provas, certamente abre flancos maiores e mais sensíveis à ocorrência de problemas, voluntários ou não ? e a OAB deveria se lembrar disso antes de criticar tão feroz e apressadamente o Ministério da Educação (MEC) pelas falhas no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), como bem lembrou o advogado Maurício Gieseler, consultado pelo Última Instância.

Não acredito que o Exame de Ordem, unificado ou não, seja perfeito e imune a falhas, sejam elas operacionais, sejam elas típicas fraudes. Como disse, num Exame nacional, é maior a probabilidade de certos problemas ocorrerem, dada a magnitude da operação que envolve a aplicação da prova.

Por outro lado, sou bastante cauteloso em relação a certas ?teorias da conspiração? que veem no Exame uma confabulação de poucos dirigentes da advocacia para aprovarem pessoas determinadas ? seus parentes, conhecidos, alunos, amigos dos amigos, etc.

Acredito mesmo que um Exame nacional diminua as chances de influências pessoais indevidas na seleção dos candidatos. Porém, estou convencido de que há uma intencionalidade da OAB na realização do Exame, que é institucional (e não pessoal, de alguns dirigentes) e que vai além do objetivo declarado de avaliar competências e habilidades profissionais para o exercício da advocacia.

A mobilização da OAB pela instituição de um exame obrigatório para o exercício profissional vem desde pelo menos a década de 1960, quando o Estatuto da Advocacia de 1963 previa o Exame de Ordem como uma das formas de ingresso na profissão, ao lado dos chamados ?cursos de estágio?, mantidos pelas próprias faculdades de direito, e cuja conclusão habilitaria automaticamente o bacharel como advogado. Foi somente com o Estatuto de 1994 que o Exame de Ordem se afirmou como única forma de ingresso do bacharel em direito na profissão.

Não por acaso, esse período conheceu uma expansão nunca antes vista do número de cursos de direito criados no país, fenômeno que iria se acentuar na década de 1990. Também nesse período (e por conta justamente da expansão do ensino jurídico), a advocacia se submeteu a um intenso processo de massificação, acompanhado da precarização das formas de exercício profissional.

A OAB, como entidade representante e controladora da profissão, vem agindo desde então, de modo um tanto errático e ineficiente, para combater os efeitos negativos dessa massificação. Nessa sua ação, Exame de Ordem e ensino jurídico tornaram-se questões centrais da política da OAB em relação ao seu mercado de trabalho e à sua própria capacidade de controlar o exercício profissional.

Daí porque o Exame de Ordem tenha também como objetivo ? se é que não pode ser esse considerado seu objetivo central ? o de controlar o mercado profissional, restringindo a entrada de novos advogados. E, ao atuar nesse sentido, o Exame converte-se em uma avaliação não dos bachareis, mas sim dos cursos jurídicos. Ao contrário do objetivo de controle do mercado ? eventualmente negado pelos dirigentes da Ordem ? o objetivo de avaliação dos cursos jurídicos é expressamente assumido pela OAB, que com base nos resultados alarmantes de reprovação no Exame de Ordem pressiona o MEC por mudanças na política sobre as instituições de ensino, além de criar sua própria mobilização, por meio do selo ?OAB Recomenda?, que certifica a qualidade de cursos com base nos resultados de seus alunos no Exame.

Dessa forma, OAB e MEC têm sido, nas últimas décadas, ora parceiros ora rivais na política do ensino superior jurídico. Formalmente, cabe ao MEC avaliar cursos, e à OAB avaliar profissionais. Por conta das pressões do mercado de trabalho, a OAB acabou por invadir as atribuições do MEC, que por muito tempo foi não só omisso, como permissivo em sua missão. Nos últimos anos, o MEC tem sido mais rigoroso na autorização de novos cursos, bem como na supervisão e na renovação dos atos autorizativos dos cursos já existentes ? movimento que atraiu novamente a simpatia da OAB, que se aliou ao Ministério nesse processo.

Por outro lado, ao perder o foco do que deveria ser uma avaliação para fins de certificação profissional, a OAB perdeu também a chance de melhorar seu Exame de Ordem, investindo em inovações metodológicas de avaliação de competências e habilidade, e numa reflexão mais saudável (e menos corporativa) sobre a diversificação e as transformações da advocacia, e sobre a evolução do ensino jurídico num país com grande dificuldade em garantir direitos e justiça para todos.

*Frederico de Almeida é advogado e cientista político. Participou de diversas pesquisas sobre a administração e a reforma da justiça. Foi pesquisador e Coordenador-adjunto do Núcleo de Pesquisas do IBCCRIM; pesquisador do CEBEPEJ e do Ministério da Justiça; Coordenador de Prática Jurídica da Escola de Direito de São Paulo da FGV; e Coordenador-Geral de Supervisão da Educação Superior do Ministério da Educação. Atualmente é assessor de Relações Institucionais da PROTESTE Associação de Consumidores. Edita o blog POLÍTICA?JUSTIÇA (http://politicajustica.blogspot.com)

Fonte: ABMES Educa