Quinta, 29 de abril de 2010
Texto elaborado para o Blog Exame de Ordem pelo Dr. Fabrício da Mota Alves, advogado, sócio do escritório Degrazia & Advogados Associados, especialista em Direito Tributário, Professor de Direito Constitucional e Coordenador do curso de Pós-Graduação lato sensu em Direito Constitucional Aplicado do Instituto PosEAD/Universidade Gama Filho. - http://professormota.blogspot.com/
Os candidatos à carreira advocatícia enfrentaram, no último dia 18, a segunda fase do 3º Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), de 2009, após uma conturbada experiência que envolveu a anulação dessa etapa mediante a constatação de fraude ao concurso. Não bastasse serem submetidos novamente à esgotante sabatina, os candidatos ainda foram obrigados a enfrentar uma prova mal elaborada que, naturalmente, implicou gabaritos dúbios, para dizer o de menos.
Vamos tomar por exemplo a prova prático-profissional em Direito Tributário: a peça processual deveria ser redigida para solucionar o seguinte problema hipotético:
?A sociedade empresária Móveis Ltda., com um único estabelecimento comercial na cidade de Belo Horizonte ? MG, celebrou contrato comercial com sociedade de país estrangeiro, ficando acertado que tal país exportaria para o Brasil determinada mercadoria, cujo recebimento ocorreria no estado de São Paulo.
Como há incidência de ICMS sobre a importação da mercadoria, o preposto de Móveis Ltda., por ocasião do despacho aduaneiro, no estado de São Paulo, apresentou a correspondente guia de recolhimento do ICMS, indicando como beneficiário o estado de Minas Gerais, e o inspetor da Receita Federal do Brasil liberou a referida mercadoria. Entretanto, o agente fiscal estadual de São Paulo abordou o preposto, solicitando-lhe que apresentasse a guia de recolhimento do ICMS e, ao constatar que o estado beneficiário era o de Minas Gerais, apreendeu a mercadoria e informou que só a liberaria mediante a apresentação do comprovante de pagamento do ICMS em favor do estado de São Paulo.
Inconformados com a apreensão da mercadoria, os diretores da sociedade constituíram advogado.?
Analisando o caso fictício, não seria difícil ao bacharel em Direito que optou por submeter-se à provação tributária deduzir que se está diante de um caso de importação de mercadoria que seria recepcionada em porto aduaneiro de determinada unidade federativa para, então, circular pelo território nacional até ser efetivamente utilizada por empresa adquirente sediada em outra unidade federativa.
Materialmente, o caso-problema é de simples solução: o candidato facilmente reconheceria o tributo envolvido, conforme o próprio enunciado informa, como sendo o Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), e verificaria seu fundamento normativo principal: CF, art. 155, inc. II. Dessa forma, observaria que, no caso hipotético, o ICMS exsurge do fato gerador ?circulação de mercadorias?, cuja operação se iniciou no exterior, ou seja, no caso, importação.
Adiante, uma consulta minuciosa ao texto constitucional revelaria, mais precisamente na alínea ?a? do inc. IX do § 2º do mesmo artigo, que referido tributo também incide ?sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade? e, o mais importante para solução da questão proposta, ?cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço?.
Apesar de restar induvidoso o texto constitucional, poderia, ainda, o examinando optar por aprofundar sua argumentação fazendo referência ao que dispõe a Lei Complementar nº 87, de 1996 (Lei Kandir), que versa precisamente sobre o ICMS, conforme expressa previsão do constituinte (art. 155, § 2º, inc. XII, ?d?) a fim de afastar qualquer dúvida quanto ao direito que assiste a empresa fictícia. O art. 11, inc. I, alínea ?d? do referido diploma versa que ?o local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável, é, tratando-se de mercadoria ou bem importado do exterior, o do estabelecimento onde ocorrer a entrada física? e a alínea ?e?, ?o do domicílio do adquirente, quando não estabelecido?.
Ora, a entrada física a que se refere o dispositivo legal supramencionado não é, conforme a doutrina e a jurisprudência pátria já esclareceram, o local do desembarque aduaneiro, mas aquele onde se sedia o estabelecimento do destinatário final da mercadoria importada, ou seja, aquele que emitiu a ordem de importação.
Feitas essas considerações pertinentes ao direito material em discussão, o candidato deparou-se com o enunciado seguinte da questão:
?Em face dessa situação hipotética, na qualidade de advogado(a) de Móveis Ltda., redija a medida judicial mais célere para a defesa dos interesses da referida sociedade empresária, abordando todos os aspectos de direito material e processual pertinentes.?
Surgem aí os problemas. Logo de início, na análise do direito processual pertinente, o examinando fora compelido a questionar-se: ?o que exatamente significa a ?medida judicial mais célere? apontada pelo enunciado??
Seria essa celeridade a menor previsão de tempo entre o ajuizamento de ação e o trânsito em julgado de decisão judicial? Seria a menor quantidade de desdobramentos processuais possíveis a depender do tipo de ação a ser adotada? Deveria essa medida desprezar o tempo a ser consumido com a adoção de medidas administrativas em decorrência de eventual sucesso no Poder Judiciário, a depender da ação judicial proposta? A celeridade deve ser considerada conforme o trânsito em julgado de decisão favorável ou eventual obtenção de medida liminar?
Ora, o próprio CESPE demonstrou desconhecer a resposta a esses questionamentos. Ao publicar o padrão de resposta à peça processual, a entidade ofereceu duas (!) possíveis soluções: um mandado de segurança e uma ação ordinária com antecipação de tutela.
Mais desastroso, impossível.
Primeiramente, o fato de admitir-se duas respostas para uma mesma questão nos leva à conclusão lógica de que o enunciado fora impreciso, pois, ao exigir-se a confecção de peça processual considerada ?a mais célere?, é certo que tal comando induz o candidato a uma resposta única. Ora, entre todas as possíveis medidas judiciais cabíveis, o enunciado exige do examinando que escolha uma apenas e que seja a ?mais célere?.
Mas o que realmente nos chamou a atenção foi o desprezo ao fato de que ambas as ações indicadas no padrão de resposta seguem ritos processuais absolutamente distintos, o que importa dizer que uma fatalmente será mais célere que outra: no mandado de segurança, por exemplo, o prazo para manifestação do réu (autoridade coatora) é de 10 dias, ao passo que, na ação ordinária, a contestação pode ser apresentada em até 15 dias. Existe, nesta, ainda, a figura da réplica, cujo prazo é de 10 dias, o que a Lei do Mandado de Segurança não prevê. Da decisão que denegar ou conceder a medida liminar em mandado de segurança cabe recurso de agravo de instrumento para o Tribunal, em até 15 dias, ao passo que, na ação ordinária, o recurso preferencial é o agravo na modalidade retido, a ser apresentado em 10 dias, ouvindo-se o agravado em igual prazo. No Mandado de Segurança, o Ministério Público é chamado a opinar. Tendo em vista possível interesse do Estado de Minas Gerais na solução do conflito, é de questionar-se a necessidade de intervenção de terceiro em uma eventual ação ordinária. Enfim, o escopo de desdobramentos que uma ação pelo rito ordinário pode apresentar é muito superior ao de uma ação de mandado de segurança. Não há dúvida quanto a isso.
Outro equívoco da Banca Examinadora foi ter mencionado como uma das possíveis respostas a ?ação ordinária?. Ora, se formos adotar um padrão de tecnicismos jurídicos, aqui fazendo alusão às preciosas lições em sala de aula da Ministra Fátima Nancy Andrighi (STJ), inexiste a figura da ?ação ordinária?, pois ?ordinário? é o rito da ação. Assim sendo, ao mencionar essa nomenclatura como padrão de resposta, a OAB estimula, logo de plano, a imprecisão técnica redacional, o que, definitivamente, não é aconselhável. No mais, adotar como resposta a ?ação pelo rito ordinário? é o mesmo que nada dizer: o que define o tipo de ação é o pedido, mesmo quando o nome atribuído for equivocado. Dessa forma, podem tramitar pelo rito ordinário ações declaratória, condenatória, constitutiva, desconstitutiva e anulatória. Ora, com isso, a resposta padrão do CESPE conseguiu ampliar ainda mais o leque de opções, devendo, agora, o examinador, atentar zelosamente aos pedidos formulados ao final de cada peça, a fim de não incorrer em correção equivocada.
Outro ponto questionável do padrão de resposta apresentado reside na necessidade de alegar o fumus boni iuris e o periculum in mora na opção de ação mandamental. Considerando que, no caso presente, não cabe a concessão de medida liminar por expressa vedação legal (art. 7º, § 2º, Lei nº 12.016, de 2009), é de se questionar o porquê de o CESPE exigir do candidato a alegação desses requisitos processuais típicos das medidas cautelares e antecipatórias. Para a propositura da ação mandamental, a lei vigente pressupõe o preenchimento dos seguintes requisitos: violação ou iminência de violação de direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data por ato ilegal ou abuso de poder praticado autoridade pública. Ora, a nova Lei do Mandado de Segurança compreende que possam existir outros requisitos processuais que não estejam elencados em seu corpo, daí o uso recorrente de expressão genérica ?requisitos legais? ao invés de ?requisitos desta lei?. Mas, muito embora se possa acrescer outros pressupostos processuais, é certo que não se pode desprezar os taxativamente previstos. Daí ter incorrido em erro técnico o padrão de resposta do CESPE ao exigir do examinando a alegação de fumus boni iuris e periculum in mora e desprezar os mais relevantes requisitos, que são a demonstração do direito líquido e certo e a ilegalidade ou o abuso de poder cometidos ? estes em proeminência daqueles, pois sequer é permitida a concessão de medida liminar no caso fictício. Há muito se discute em tribunais que, na demonstração do direito líquido e certo, não pode pairar ?fumaça do bom direito?, mas, ao contrário, deve-se ter por evidente sua existência: uma prova pré-constituída. Não pode ser demonstrado a posteriori, mas de plano, quando da propositura da ação.
Enfim, podemos ainda continuar a discorrer sobre as imprecisões técnicas da resposta padrão, bem assim do enunciado claramente mal elaborado. Mas não iremos fazê-lo, pois nosso espaço aqui é limitado.
Apenas nos restar lamentar o fato de que perdem, com as questões dúbias, respostas imprecisas e certame vicioso do CESPE, a sociedade e a própria OAB, na medida em que se criam obstáculos intransponíveis para o bacharel de Direito poder contribuir para a administração da Justiça, na medida em que tolhe, por vias tortas, os candidatos do direito ao exercício dessa nobilíssima profissão e, assim, de poder trabalhar honestamente em prol do cidadão.