Considerações sobre as mudanças que ocorrerão no Exame de Ordem em 2012

Sexta, 23 de setembro de 2011

Ontem de noite o UOL publicou uma notícia sobre uma nova comissão criada pela OAB para modificar, mais uma vez, o Exame de Ordem. Confiram a matéria e depois algumas considerações sobre as propostas:

OAB instaura comissão para mudar exame da ordem

A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) instaurou uma comissão para implementar mudanças no exame de ordem, como, por exemplo, a inclusão de questões sobre ciência política e direitos humanos. A ideia é que a primeira prova de 2012 já seja renovada.

Já está prevista a inclusão de conteúdos do chamado eixo de fundamentos do direito, que inclui também as disciplinas de filosofia e sociologia geral e jurídica, psicologia, antropologia, economia e ética geral e profissional.

De acordo com o presidente do Conselho Federal da OAB, Ophir Cavalcante Júnior, a medida é uma resposta a críticas feitas à prova. "Os coordenadores de cursos em todo o Brasil são unânimes em criticar o exame por não ser voltado a advogados que tenham uma visão crítica e que saibam situar a advocacia dentro de uma análise mais global", afirmou.

Os seis membros da comissão formarão um banco de perguntas que servirá para orientar as alterações. "O exame está em permanente construção na busca por equilíbrio, e essas disciplinas são essenciais para formar advogados mais completos", disse Cavalcante.

O professor do Departamento de Educação da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) João Virgílio Tagliavini, um dos membros da comissão, pretende trabalhar por mudanças no próprio modelo do exame. "Em média, 85% das questões são respondidas com memorização da lei. Esse tipo de teste hoje já é inútil", disse. "Queremos uma avaliação que verifique mais a capacidade de pensamento, compreensão e espirito crítico."

Cavalcante nega a prevalência de questões de memorização, mas concorda que o atual modelo é mais voltado para questões técnicas da profissão.

Fonte: UOL

Vamos jogar luz sobre a matéria acima.

1 - Tais mudanças não implicarão na redação de um novo provimento sobre o Exame de Ordem. O provimento atual (144/11) já contempla a possibilidade da inclusão das disciplinas do chamado Eixo de Formação Fundamental:

Art. 11. O Exame de Ordem, conforme estabelecido no edital do certame, será composto de 02 (duas) provas:

(...)

§ 3º O conteúdo das provas do Exame de Ordem contemplará as disciplinas do Eixo de Formação Profissional, de Direitos Humanos, do Estatuto da Advocacia e da OAB e seu Regulamento Geral e do Código de Ética e Disciplina, podendo contemplar disciplinas do Eixo de Formação Fundamental.

A previsão contida no § 3º não é resultado do acaso: o desejo pela inclusão de tais disciplinas vem sendo ventilado já há algum tempo.

2 - As mudanças, de acordo com a matéria, seriam implementadas no primeiro Exame de Ordem de 2012. Imagino, mas NÃO tenho certeza, que as próximas duas edições da prova não sofrerão essas mudanças. Falo aqui dos editais a serem publicados no dia 26/09 e no dia 29/12. São as duas últimas edições referentes ao período de 2011.

Cronologicamente falando, tais alterações devem ser implementadas para a prova cujo edital deve sair em ABRIL de 2012.

Mas como aduzi acima, não tenho essa certeza. A falha pode ser referente ao edital que será publicado no dia 29 de dezembro.

Vou diligenciar para sanar essa dúvida. Mas, em princípio, acho que as próximas duas edições não sofrerão mudanças.

3 - Serão DUAS mudanças estruturais sobre as quais a comissão trabalhará.

A primeira, mais óbvia, refere-se à inclusão das chamadas Disciplinas do Eixo de Formação Fundamental, agora passíveis de serem exigidas em conjunto com as disciplinas do Eixo de Formação Profissional, conforme o quadro abaixo:

Quais disciplinas serão incluídas ainda, evidentemente, é uma incógnita. Vai depender do rumo do trabalho a ser realizado pela comissão (e da aceitação do Conselho Federal da OAB).

De toda forma, sua consequência para os candidatos é evidente: terão de estudar mais disciplinas e, principalmente, terão de se preparar com muito mais antecedência para a prova.

A segunda mudança, não muito óbvia, guarda correlação com uma alteração mais profunda na prova: na própria estrutura da formulação das perguntas!

Aqui é interessante reproduzir a manifestação do doutor e professor do Departamento de Educação da UFSCar Universidade Federal de São Carlos, João Virgílio Tagliavini, um dos membros da comissão:

"Em média, 85% das questões são respondidas com memorização da lei. Esse tipo de teste hoje já é inútil", disse. "Queremos uma avaliação que verifique mais a capacidade de pensamento, compreensão e espirito crítico."

O próprio modelo de formulação das perguntas está em xeque. De fato, um grande percentual das questões são meras reproduções do conteúdo das leis, e isso está no cerne de muitas das controvérsias envolvendo a prova, principalmente desenvolvidas em torno das "pegadinhas" e de uma prova que "não avalia nada".

Tenho em mãos aqui um trabalho coordenado pelo próprio professor João Virgílio sobre a estruturação do Exame da OAB: Exame de Ordem, uma visão crítica, editado pela UfsCar (2010).

Nela a equipe do professor João tece fortes críticas ao modelo atual do Exame de Ordem e sua finalidade como instrumento de seleção dos futuros advogados.

No estudo, a equipe teve o cuidado de analisar o conteúdo e a formulação da prova sob a taxonomia de Bloom.

A taxonomia de Bloom é uma estrutura de organização hierárquica de objetivos educacionais. A classificação proposta por Bloom dividiu as possibilidades de aprendizagem em três grandes domínios:

- o cognitivo, abrangendo a aprendizagem intelectual;

- o afetivo, abrangendo os aspectos de sensibilização e gradação de valores;

- o psicomotor, abrangendo as habilidades de execução de tarefas que envolvem o organismo muscular.

Cada um destes domínios tem diversos níveis de profundidade de aprendizado. Por isso a classificação de Bloom é denominada hierarquia: cada nível é mais complexo e mais específico que o anterior. O terceiro domínio não foi terminado, e apenas o primeiro foi implementado em sua totalidade.

E foi sob o primeiro, o cognitivo, que a equipe da UfsCar laborou. Vejamos o quadro hierárquico do domínio cognitivo:

Vejamos o escalonamento do grau de dificuldade da taxonomia:

A equipe da UfsCar, em seu trabalho, fez o seguinte raio-x do Exame:

Em relação às fontes do direito:

a) 75,75% das questões enfatizam a memorização das normas;

b) 13,75% são questões com foco na doutrina;

c) 1% abordam aspectos jurisprudenciais e;

d) 9,5% abordam mais de uma fonte do direito.

Em relação às exigências de cognição:

a) 57,25% das questões estão no 1º degrau da taxonomia de Bloom, o conhecimento (o mais simples);

b) 26,5% das questões estão no 2º degrau, que exige a compreensão;

c) 5,75% no 3º degrau, o de capacidade de análise;

d) 2% no 4º degrau, o de capacidade de síntese e;

e) 1% no 5º degrau, o da capacidade de avaliação.

É nítido, no estudo, a correlação entre as fontes do direito e ao tipo de exigência cognitiva.

Questões cuja estrutura decorre da mera utilização da letra da lei correspondem às questões cujo o grau de cognição é o mais simples, o 1º da taxonomia de Bloom.

Ou seja, a prova da OAB, em termos de demonstração de capacidade cognitiva, compreensão de institutos ou mesmo puro raciocínio jurídico, seria uma prova inadequada. O simples uso da memória, do "decoreba", propiciaria ao candidato um desempenho adequado na prova, resultando em sua aprovação, sem uma análise mais profunda de suas capacidades intelectuais.

Isto, entretanto, não deve ser confundido, em absoluto, com grau de dificuldade da prova, apesar de guardar próxima correlação.

E aqui eu chego ao cerne da questão, e, para mim, sobre exatamente o que deve ser o Exame de Ordem.

Não preciso discorrer muito sobre os percentuais de reprovação atuais do Exame da OAB. Todos conhecem bem os dados estatísticos das últimas edições - Estatísticas da 2ª fase do IV Exame de Ordem. A prova da OAB, como é hoje, representa um grande desafio.

Será que a mudança no perfil da prova, com questões menos dogmáticas e contruídas em uma escala mais elevada da taxonomia de Bloom, seria a solução para uma melhor seleção dos futuros advogados?

Se o nível de raciocínio, da utilização da lógica e de inferências for elevado na hora de se construir a prova, esta poderá atender a seu papel de melhor selecionar os candidatos desejosos de integrar os quadros da OAB.

A que preço?

Se a prova é o que é hoje, preponderantemente dogmática e que demanda apenas o reconhecimento e evocação de informações sem maiores ilações, o que ocorreria se a prova fosse mais complexa sob este aspecto?

Reprovaria mais?

A pergunta é retórica. Obviamente que reprovar mais é uma grande possibilidade, principalmente diante do atual quadro de qualidade do ensino ofertado aos estudantes de Direito no Brasil, em especial para os estudantes das instituições privadas.

O ensino nas faculdades não está muito distantes do dogmatismo da prova, e com a penetração da prova no 9º e 10º semestres, tal constatação é de simples obtenção.

Qual será a escolha da OAB? Manter uma prova tal como está, reprovando muito, ou modificá-la e correr o risco de reprovar mais?

Não quer dizer exatamente que reprovará mais, mas a existência dessa possibilidade é irrefutável e imensamente tangível. O simples aumento no número de disciplinas tornará o processo de preparação mais sofisticado, difícil e demorado. Alterar a estruturação dos enunciados e das respostas da prova, seguindo a lógica da taxonomia de Bloom, demandará mais esforço cognitivo dos candidatos.

Se a OAB busca excelência para seus quadros, e mesmo se busca forçar as faculdades, de cima para baixo, a melhorar o ensino jurídico hoje ofertado, esse é o caminho.

E se isso implicar em percentuais maiores ainda de reprovação, mas sob os auspícios de uma prova bem concebida, irretocável como instrumento de avaliação de conhecimento de uma ciência que vai muito além do dogmatismo atualmente exigido, não restará muitos motivos para eventuais reclamações.

Será uma questão de escolha, e as escolhas cobram ao fim um preço, e o preço aqui é a pressão dos atuais e futuros reprovados.

Por outro lado silenciaria uma série de críticas em razão da qualidade da prova.

Se a OAB, por outro lado, mantiver seu discurso de só exigir o mínimo, é de se perguntar se o atual formato não seria o ideal.

Parece ser um encruzilhada.

Antes de pensar o que deve ser a prova, a OAB precisa botar a mão na consciência e definir efetivamente a finalidade do Exame. E seja lá o que for, assumir isso para si mesma e lutar para fazer dessa escolha uma solução definitiva.

Eu sempre quis saber a resposta para uma pergunta simples, decorrente do discurso muitíssimo batido da OAB:

O que é o mínimo necessário para o exercício da advocacia?

A resposta para essa pergunta deve ser o ponto de partida para o futuro Exame de Ordem. Qualquer outra coisa representará apenas um casuísmo.

Infelizmente a criação dessa comissão não foi precedida por um debate público aberto aos estudantes, bacharéis, cursos e demais envolvidos no Exame de Ordem e no ensino jurídico de um modo geral.

Como faz falta a OAB publicizar de verdade esse debate...e isso por uma razão muito simples: o Exame de Ordem não representa apenas uma questão técnico-jurídico-acadêmica. Ele também é questão de fortíssimo cunho social. Estamos falando da vida e da profissão de muitos, tantos de bacharéis, advogados, estudantes, como também do jurisdicionado. Ou seja, potencialmente de toda a população deste país.

O interesse no debate transborda os muros da Ordem dos Advogados do Brasil.