Concurso público virou uma gincana com toques de sadismo

Quinta, 12 de setembro de 2013

Achei um texto sensacional do jornalista Moisés Domonte sobre concursos públicos. Ele traduziu dentro de um plano racional percepções que passam despercebidas por muitos e muitos concurseiros e também examinandos, mais preocupados em jogar o jogo do que entender os porquês do jogo ser o que é.

O título remete ao universo dos concursos públicos, mas é perfeitamente enquadrável no mundinho do Exame de Ordem.

Não deixem de ler!

Concurso público virou uma gincana com toques de sadismo

O modelo de concursos públicos usado no Brasil é ilógico,ineficiente, absurdo, cruel. É perverso tanto do ponto de vista dos candidatos quanto do ponto de vista da administração pública. Hoje, a impressão que se tem é que as bancas de concursos ? muito especialmente o Cespe, a Esaf e a FGV, são compostas por sádicos cujo único objetivo é torturar os concurseiros de todas as formas possíveis, sem ter nenhuma preocupação com a seleção dos melhores candidatos.

8 - instrumento de tortura da inquisição - instrument of torture inquisition - strumento di tortura dell  

Já está se formando um consenso ? inclusive entre os responsáveis por essas bancas ? de que os concursos nem sempre selecionam os melhores profissionais, mas os melhores concurseiros, o que é completamente diferente. Hoje são classificados nas primeiras posições não necessariamente as pessoas com mais capacidade técnica para os cargos (embora isso também ocorra, claro), ou com maior conhecimento sobre o assunto, e sim aquelas com maior capacidade para resolver as questões da prova e de desenvolver estratégias de estudo e de resolução, entregando à banca o que a banca quer. Uma vez empossados no serviço público, há pessoas (repetindo: não todas!) que têm desempenho sofrível, pois suas atividades já não têm mais nada a ver com o processo de estudar para passar na prova.

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A mentirinha do cargo para ensino médio

O erro começa na própria definição dos conteúdos a serem cobrados. Hoje, as provas para cargos para os quais se exige apenas ensino médio cobram conteúdo obviamente próprios de graduação ? geralmente Administração e Direito. É uma grande farsa, pois a banca deseja, na realidade, selecionar alguém graduado nessas áreas que aceite ganhar um salário de nível médio. O órgão público permite isso porque lhe interessa pagar o menor salário possível, e assim abre a seleção para todos, sabendo, de antemão, que o perfil desejado não é esse. No fim, pouquíssimas pessoas que têm apenas ensino médio são aprovadas. Muitos dos concursandos que fazem provas de nível superior e nível médio de um mesmo órgão contam que consideraram aquelas para cargo de ensino médio mais difícil. Quando isso acontece, algo está sendo feito errado.

Decifra-me ou te devoro

Outro problema é o processo de fazer das provas não um processo de verificação de conhecimentos, mas uma gincana de pegadinhas. As questões têm enunciados longuíssimos, com linguagem obscura. São cobradas informações de nota de rodapé. O conhecimento real é deixado de lado, a fim de averiguar a capacidade de memorização. E as questões diretas são abandonadas e em seu lugar tudo é pegadinha: a vírgula que muda tudo, a frase retorcida, o ?não? que inverte o sentido. Com isso, testa-se a capacidade do candidato de perceber armadilhas linguísticas, e só. Para que tipo de cargos isso será, efetivamente, útil?

Qual a cor do cavalo de Napoleão?

Deve-se lembrar também da cobrança de conhecimentos inúteis. Qual o sentido de cobrar informática em um nível que ninguém usa? Provas cobram Linux e requerem que as pessoas enumerem passos de atividades que, na prática, são perfeitamente capazes de realizar, mas que dificilmente serão capazes de descrever, pois ninguém no mundo real faz isso. Sem falar da cobrança de língua estrangeira para quem jamais será requisitado a usá-la, ou das perguntas sobre detalhes obscuros das disciplinas, o que acaba forçando o concurseiro a se tornar um especialista em banalidades.

Ai que preguiça de corrigir!

A forma como são aplicadas e corrigidas as provas também é ineficiente e perversa. Para economizar custos, as provas fechadas e abertas costumam ser aplicadas agora em um único dia, e não em etapas e datas diferentes, como se fazia há alguns anos. Assim, todos os candidatos são obrigados a fazer provas abertas, mas apenas as provas de alguns deles serão corrigidas. Ora, se todos já fizeram, por que não são corrigidas todas as provas, e por que não é atribuída pontuação a todas elas, de modo a considerar na classificação da prova tudo o que cada candidato respondeu? Alguns podem se sair melhor nas provas fechadas e outros nas provas abertas. Considerando a prova inteira de todos, têm-se maior probabilidade de selecionar profissionais melhores. Mas porque não fazem isso? Ora, preguiça. Imagine corrigir provas abertas de milhares de candidatos, e não apenas de umas poucas dezenas?

Explique em 20 linhas porque o governo é excelente

E as provas que cobram não um conhecimento, mas um posicionamento? Questões são elaboradas para que o candidato adote uma determina interpretação, ou uma mesmo uma ideologia. Há questões construídas para que o candidato elogie o governo (não é, Esaf?). E nos concursos de direito, além de saber das leis e decisões judiciais, o candidato ainda precisa escolher uma doutrina ? não basta conhecer todas as doutrinas, ele precisa escolher uma delas, para responder a prova de acordo com aquela preferida pelos membros da banca, mesmo sem saber quem são eles.

Azar o seu

A crueldade prossegue na forma como os candidatos são tratados pelas bancas. Provas são marcadas e depois canceladas, adiadas ou anuladas. Por mais que isso enseje a devolução da taxa de inscrição, como ficam os prejuízos com remarcação de passagens, reservas de hotéis, etc? Ora, para as bancas, e mesmo para os órgãos públicos, danem-se os cidadãos.

Obedeça sem questionar

Os fiscais de prova são outro problemas: muitos são mal preparados. Sabe-se de casos em que o fiscal esqueceu-se de marcar a passagem do tempo de prova (há concursos em que o fiscal escreve no quadro, a cada meia hora, ou de hora em hora, o tempo restante), e, com isso, surpreendeu a todos dizendo que já estava na hora de entregar o gabarito. Isso sem falar dos fiscais que querem desmontar o iPhone: por uma exigência esdrúxula das bancas, não basta desligar o celular durante a prova, é preciso remover a bateria dele; acontece que a bateria do iPhone não sai. Por mais comum que o iPhone já seja hoje, há muito fiscal que não sabe disso e arma o maior problema com o concursando. O que custa informá-los sobre isso no treinamento que fazem?

Nunca faça hoje o que pode ficar para depois de amanhã

Embora exijam o cumprimento dos prazos por parte dos candidatos, as bancas organizadoras são, elas mesmas, quase incapazes de cumprir os seus. Começa com os editais que raramente contêm o cronograma certo. Hoje, sempre é ?data provável?, que quase sempre muda. E, depois de aplicada a prova, é uma enrolação sem fim para divulgar gabarito e depois divulgar resultados, o que mais uma vez demonstra sua incompetência. Na última prova do Detran-DF, passaram-se meses entre a conclusão do curso de formação e a divulgação do resultado.

Segredos e mistérios

Transparência é outra coisa a que as bancas não são chegadas ? embora seja até um princípio da administração púbica. Bancas como o Cespe divulgam nome e nota apenas daqueles que se classificaram dentro das vagas, recusando-se a informar a classificação dos demais. Ora, se hoje até os salários dos servidores são públicos, por que não tornar público também nome, nota e classificação de cada um dos candidatos que participaram do concurso? O que há por trás disso?

No fim das contas, o processo tornou-se completamente viciado. De vez em quando surgem propostas para reformular tudo, algumas delas até mais esdrúxulas do que aquilo que já é praticado hoje. Especialistas da FGV, por exemplo, sugeriram criar um limite de três tentativas para que o cidadão dispute uma determinada vaga em um mesmo órgão público. Ou seja: quem tiver sido reprovado três vezes nos concursos para um mesmo cargo, seria impedido de tentar a quarta vez. A justificativa seria reduzir os custos dos concursos, desestimulando de concorrer aqueles que não se sentissem suficientemente preparados. Essa bobagem é flagrantemente inconstitucional, já que atentaria contra a igualdade de condições entre os cidadãos. Mas, além disso, é também uma grande perversidade, mais um passo na transformação dos concursos em gincanas, pois o processo real de preparação comporta a ideia de que a cada nova tentativa, o candidato desenvolveu mais competências. Mesmo com um modelo de prova justo e lógico, que cobrasse conhecimentos, já seria injusto; imagine com o atual modelo de pegadinhas.

A impressão que se tem é que uma banca ao ser escolhida, se reúne nos porões de um castelo mal assombrado a fim de pensar de que modo poderá fazer mais maldades com os cidadãos que buscam trabalhar no serviço público: que regras mais tolas, que novas dificuldades na hora de se inscrever, que novas proibições podem ser criadas e que obscuridades, raciocínios retorcidos, posições ideológicas e detalhes inúteis de disciplinas podem ser cobrados na prova. ?Quantas noites de sono podemos tirar do candidato? Quantas correrias, quantas lágrimas, quanta revolta, confusão, indignação, frustração e raiva podemos lhe causar?? E quando finalmente elaboram edital e prova, concluem com a risada maligna: Ahahahahahahahahahahaha!

E a administração pública segue padecendo dos mesmos problemas de sempre, já que o processo seletivo visa à tortura e ao sadismo, e não à seleção dos melhores profissionais.

Fonte: Blog do Domonte