Quarta, 14 de janeiro de 2015
Tenho recebido várias reclamações de candidatos que fizeram a última prova de Direito Civil afirmando que o enunciado da peça prático-profissional possui um vício de concepção, o que inviabilizaria a solução apontada pela FGV como sendo a correta, ou seja, o Recurso Especial.
Não estão apontando o cabimento de uma outra peça prática, mas sim argumentando que um potencial vício no enunciado ensejaria a nulidade da própria peça prático-profissional.
Os vícios que ensejariam a nulidade seriam, até onde me informaram, dois:
a) ausência de prequestionamento;
b) revolvimento de fatos e provas em recurso especial, o que é inadmissível.
Bom, vamos dar uma olhada primeiro no enunciado. Nele vou marcar alguns pontos interessantes:
A primeira coisa a ser observada é que não existe outra peça a ser apresentada a essa hipótese que não seja o próprio Recurso Especial.
Tratou-se de um acórdão do TJ/RJ, ou seja, decisão colegiada, de forma unânime, o que afasta a hipótese de Embargos infringentes e, é bom notar, afastando também a possibilidade dos embargos declaratórios, por ordem do próprio enunciado.
Não existe, portanto, dúvida quanto ao recurso em si.
Sobra a pergunta: há vício no enunciado que ensejaria a nulidade da peça?
Temos um problema quanto a ausência de prequestionamento ou falta de fundamentação de Direito, sendo necessário, portanto, revolver fatos e provas?
Eu não consegui ver qualquer vício neste sentido.
Vamos tratar disto em partes:
Prequestionamento
Não há ausência de prequestionamento no enunciado, pois a tese a ser atacada é bastante clara e FOI devidamente tratada pelo tribunal.
A tese de Direito discutida pelo Tribunal foi: o fato do Juiz ter deferido o pedido de desconsideração da personalidade jurídica da empresa, procedendo à penhora, que recaiu sobre o patrimônio dos sócios Y e Z.
Este era o objeto do agravo e isto é o que foi julgado.
No enunciado, a banca deixa claro que o Tribunal teceu tese sobre a questão, se posicionando de forma FAVORÁVEL ao pleito do agravo: "com fundamento nos artigos 2º e 28 do CDC (Lei nº 8.078/90), por não haver prova da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial."
O TJ portanto fundamentou sua decisão (Arts. 2º e 28 CDC) por não ter visto prova da existência de desvio de finalidade ou de confusão material.
Ou seja, o juiz desconsiderou a personalidade jurídica da empresa e o Tribunal reformou a decisão dele, estritamente quando a questão da personalidade jurídica.
A matéria foi tratada na íntegra na decisão! Se busca um prequestionamento, via embargos de declaração, quando o julgado é omisso, obscuro ou contraditório. Como a decisão foi clara quanto ao ponto discutido, prequestionar via embargos de declaração não faz sentido.
Dentro do problema, não há nenhum problema de lógica processual neste ponto, pois a matéria ESTÁ prequestionada no corpo da decisão.
Revolvimento de fatos e provas
O outro argumento é o de que o Recurso Especial não pode ser utilizado para revolver fatos e provas, e por isso o enunciado estaria viciado.
Também não é o caso.
O objetivo do Recurso, no caso apresentado, seria o de atacar a aplicação ERRÔNEA, exatamente, dos dois artigos usados pelo Tribunal para dar provimento ao agravo da empresa.
No caso, e aqui vai o detalhe importante, a lei foi usada de forma EQUIVOCADA:
Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.
(...)
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
Ora, o TJ desconsiderou o fato de que, como se trata de uma relação de consumo, a desconsideração da personalidade jurídica é regida pela teoria menor (Art. 28 do CDC), que dispensa a prova da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial, bastando a constatação da insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações.
Exatamente aí o candidato deveria, no seu recurso especial, dizer que o estava interpondo por vulneração direta a dispositivo de lei federal, na forma do Art. 105, III, a, da CF e 541 e seguintes do CPC.
A tese é TODA de Direito, e não seria o caso de revolvimento de fatos e provas.
Pois bem.
A partir daqui faço duas considerações.
1) já escrevi várias vezes e volto a repetir: candidato nenhum deve pensar o enunciado como um fato em concreto, mas sim como um problema dentro de si mesmo. Trata-se de uma prova e ele tem de atentar que a "realidade" descrita nela visa atender ao interesse da banca, e não ao interesse de um hipotético juízo real. Isso significa dizer que a banca pode apresentar o enunciado de uma forma que o candidato fique confuso, EXATAMENTE para filtrar quem domina e entende a proposição de um problema daqueles que ficam em dúvida ou que não compreendem o que está sendo pedido.
Se a banca o faz isso de forma artificial, trata-se de um "peguinha", se ela faz usando a lógica de um fato e a aplicação da lei, aí ela está selecionando mesmo.
O termo "por não haver prova da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial", por exemplo, serviu para filtrar alguns candidatos , no meu entender, pois isto foi parte da fundamentação, EXATAMENTE no ponto em que conflita cm o art. 28 do CDC, no ponto da teoria menor. Aqui, a banca filtrou pelo conhecimento.
2) NUNCA a banca anulou uma peça prática. E olha que já tivemos casos extremos. Não só o presente problema não é extremo como ele tem a favor de si um enunciado perfeitamente defendível.
Sequer adianta recorrer neste caso pois a banca, em seus recursos, não reforma o entendimento contido no padrão e no espelho.
Os candidatos que não fizeram o Recurso Especial, infelizmente, vão reprovar.
Uma última e importante consideração.
Ninguém aqui tem o interesse de jogar terra nas expectativas e sonhos dos candidatos. Ao contrário, se enxergamos um vício real e manifesto nós lutamos no interesse de vocês.
Não só somos pioneiros absolutos em brigar com a banca, como também o fizemos SOZINHOS por muito tempo e já colhemos algumas vitórias como também algumas derrotas, mas sem deixar de dar a cara a tapa. A última vez foi no XIII Exame, em que lutamos sozinhos para que a banca aceitasse a peça Embargos de Terceiros, absolutamente cabível diante da hipótese apresentada.
E nós conseguimos, após termos iniciado nossa luta AINDA na então Mesa Redonda:
Mesa Redonda - Análise da prova Trabalhista
ATENÇÃO: OAB publica comunicado aceitando Embargos de Terceiro na prova da 2ª fase trabalhista!!!
Professor Renato Saraiva fala sobre a vitória de VOCÊS na questão dos Embargos de Terceiro
Corremos, lutamos, peticionamos e conseguimos ajudar os candidatos naquela oportunidade.
Mas, naquele caso, a tese era defensável.
Agora, infelizmente, não vejo como defender o ponto de vista dos candidatos que não fizeram o Recurso Especial.
Isso não quer dizer que os candidatos insatisfeitos não têm razão. Ninguém aqui é dono da verdade e o Direito permite a defesa de vários pontos de vista a partir de uma mesma situação, mas não consigo combater a banca por apenas combater, sem acreditar em eventual tese a ser defendida.
Eu realmente não vejo nenhum vício na peça.