Quando Marco Aurélio Branco frequentava diariamente o Valongo, no começo da década de 80, ali nada existia além de escombros e muita decadência. Era nas calçadas do hoje imponente prédio do Museu Pelé que o menino de 15 anos dormia nas noites em que não conseguia trocados para pagar pelas diárias nos vizinhos hotéis Monte Alegre e Astor.
As marquises da Rangel Pestana, na lateral de uma padaria na Vila Mathias, e os pães dados pelos padeiros também o protegeram da chuva e da fome. Dos muitos cortiços em que viveu de favor, na maioria das vezes com famílias que não eram a sua, ele lembra dos ratos e de um único ovo que sobrou na geladeira e que quase lhe custou a vida.
Essa história não é diferente de outras reais ou mesmo das tantas obras de ficção que acompanhamos nas novelas. Mas até que se chegue aos dias atuais é preciso entender como uma conquista recém-alcançada teve sabor especial para esse homem prestes a completar 50 anos.
Nascido no dia 1º de janeiro de 1966, Marco Aurélio cresceu sem mãe. Não que ela tenha morrido, mas nunca o quis. Simples assim. Também não conheceu a proteção geralmente atrelada à figura paterna. Foi dado a uma família substituta, não em adoção, mas como favor. Seis anos depois, os ?padrinhos? o devolveram ao pai.
- Me lembro bem das duas sacolinhas de supermercado que traziam a meia dúzia de roupas que eu tinha. Foi aí que conheci minha irmã pela primeira vez. Ela tinha 9 anos.
Viveu com o pai e uma madrasta por pouco tempo até a separação do casal. Ele foi parar no Anália Franco (internato). Na sua lembrança e pelo que contam alguns poucos parentes, ficou como interno por menos de um ano.
- Ninguém quis me adotar.
Só voltou para a casa depois de um Natal passado na casa de tios que ameaçaram denunciar o pai para o temido Juizado de Menores. O lar se resumia a um quartinho na Marechal Pêgo Júnior, na Vila Nova. Era 1973 e ele ainda estava fora da escola, mesmo aos 7 anos.
Surra de cinturão
Mesmo longe da solidão dos abrigos, Marco Aurélio viveu tempos difíceis. A convivência com o pai era sinônimo de castigos físicos, humilhações e falta de afeto. A única vantagem era ter um endereço para voltar depois da escola ou mesmo quando já estava trabalhando no Banco do Brasil, como menor aprendiz.
Aos 15 anos, uma paixão adolescente representou a gota d´ água que o empurrou para fora de casa. Seu erro foi ter tentado comprar um presente para uma garota com o salário que recebia. Na única vez que transgrediu a regra de entregar todo o dinheiro para o pai no final do mês, apanhou de cinturão em plena Praça Mauá.
- Era época daquela novela Coração Alado (exibida na Rede Globo em 1981) e eu queria comprar o LP com as músicas internacionais. Meu pai me seguiu e eu nem tinha comprado o presente, mas apanhei muito. Fiquei com muita vergonha dos meus colegas do banco, diz hoje, com os olhos marejados, vermelhos, pela emoção e dor de resgatar o passado.
A decisão de sair de casa já estava tomada. Pensava em pagar aluguel em quartinhos com o dinheiro que ganhava como patrulheiro. Não deu certo. Começou a faltar no emprego e logo estava desligado do estágio.
Trabalhou na feira, carregava peso, fazia bicos ali e aqui apenas para conseguir o suficiente para a diária dos hotéis baratos do Valongo. Quando a equação não fechava, ficava na rua.
- Nunca catei comida do lixo. Batia de porta em porta e pedia.
Em algumas madrugadas voltava para casa quando sabia que o pai não estava. A nova madrasta gostava dele e lhe permitia tomar banho e comer uma refeição quente.
Na feira, além dos restos de frutas e legumes que o alimentavam, fez amigos. O principal deles é um ?fogãozeiro? que lhe pagava para carregar a mala pesada ou para segurar o cartaz com a propaganda dos serviços. O novo amigo não se importava em dividir com ele o pouco que a família tinha. Por algum tempo foi morar com eles em cortiços de vários bairros da Cidade.
- Ele tinha um carro velho e como eu sempre tive vozeirão andava com ele por aí.
Nessa época, pelo megafone ele anunciava: ?Conserto fogão, máquina de lavar... Consertamos na hora?.
A única dificuldade é que André, ?o fogãozeiro?, era nômade. Vivia lá e cá. Vira-e-mexe sumia de Santos. Nesses tempos, Marco já conseguia se virar melhor com os bicos em obras e até como balconista e ajudante geral no pequeno comércio. Nunca com carteira assinada. O dinheiro quase sempre era suficiente apenas para mantê-lo longe das calçadas.
Casa e família
Entre os amigos que conseguiu nessa estrada, estavam dois irmãos que viviam num quarto em mais um dos casarões da Vila Mathias transformados em habitação coletiva. É nesse ponto da história que entra o episódio do ovo.
- Levei uma facada porque comi o único ovo que tinha na geladeira.
Aos 18 anos, e habitué dos cortiços, ele lembra das noites em que se pegava olhando para as janelas iluminadas de prédios grandes da Cidade e imaginava o que estariam fazendo aquelas famílias.
Na lista dos poucos sonhos a que se arriscava sonhar estava o de ter sua casa, sua esposa e seus filhos. O maior obstáculo estava na falta de estudo. Saiu da escola no 7º ano no Ensino Fundamental.
A virada da mesa começa aos 19 anos com o alistamento obrigatório no serviço militar. O esforço para se manter no Exército foi reconhecido pelo pai, com quem voltou a morar. Foram quatro anos como soldado. A vida adulta chegou junto com novos empregos, com um casamento e a separação três anos depois.
Daí veio um concurso para cobrador da extinta CSTC, novo casamento, e a mudança de Santos para a Paraíba, terra da nova mulher. A primeira filha chegou quando ele tinha 27 anos, em seguida veio o filho.
De volta à terra natal, ao lado da família que tanto queria ter, ele ousou trazer à tona seu maior sonho, o de um dia ser doutor.
Um dia após o outro
O ganha pão veio do trabalho como porteiro noturno e das diárias como vendedor ambulante. Novamente o vozeirão serviu para anunciar ?pamonha caseira, curau caseiro... É uma delícia?! Mas eram as aulas do supletivo que alimentavam sua alma de esperança.
E foi em 2009 que ele começou a colocar em prática esse mantra. Fez vestibular para a Faculdade de Direito, conseguiu financiamento, pagou à vista pelos primeiros seis meses de curso e foi vivendo um dia após o outro.
- Por cinco anos eu entrava no serviço meia-noite, saía às 6 horas, tomava um banho gelado, um balde de café e ia para a faculdade. Voltava às 13 horas e às 14 já estava nas ruas vendendo pamonha. Dormia das oito até 11 da noite e voltava para o prédio.
Nessa maratona, contou com apoio dos novos colegas de classe e dos professores que doaram os livros que hoje formam sua pequena biblioteca jurídica. Marco não esquece de um único nome, tanto que fez uma lista enorme de agradecimentos, mas que não caberia nesta página.
Sabe sua última conquista depois de se formar em dezembro do ano passado? Ele foi aprovado no Exame de Ordem dos Advogados cujo resultado foi divulgado no último dia 6. Já pode ser chamado de doutor! Seu mais novo desafio, agora, é provar que mesmo aos 50 anos pode começar uma carreira. Alguém duvida?
Fonte: A Tribuna